quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Memórias do Cárcere - Parte III

Continuação de minha narrativa. Se você não leu a primeira e a segunda parte, clique aqui e aqui, mas não aqui.


CAPÍTULO 5 – O CARCERÁRIO

Em primeiro lugar, preciso dizer que eu fiquei numa cela. Mas eu não estava numa cadeia. Aquela cela serve apenas para manter autores em flagrante delito até os burocratas do sistema (delegado e juízes) decidirem o que fazer com os mesmos: encaminhar para a Papuda (prisão local), conceder liberdade, atiçar fogo e jogar as cinzas no lago Paranoá ou alguma outra decisão mirabolante da [in]Justiça.

O policial civil que conduziu a nós quatro para nosso novo lar não parecia muito simpático. Até hoje eu conjecturo o motivo dele estar tão puto. Estaria ele com raiva da gente? Era tão estranho aquilo. Até cinco minutos atrás, ele sequer nos conhecia, nunca nos vira antes (agora os policiais que participam da história não são os mesmos de antes, em sua maioria, são civis). Nem sabia exatamente por que estávamos sendo presos. Não desrespeitamos ele em nenhum momento. Então, o que era tudo aquilo? Era fingimento? Será que fazia parte da necessidade de seu trabalho que ele se imbuísse de uma expressão iracunda para transmitir maior seriedade ao exercício de suas funções? Conforme postula Erving Goffman, seria essa uma “representação do eu” daquele civil? Compreendo perfeitamente que cada um de nós, conforme afirma Goffman, atua conforme o ambiente em que está inserido, o cenário que está e os atores que interagem conosco. Mas mudanças tão drásticas e contraditórias de comportamento para mim são difíceis de imaginar. Não consigo pensar naquele civil num culto religioso, ou em seu lar, brincando com a filhinha de três aninhos, todo doce, e depois ir cheio de ternura para perto da esposa. Para mim é indissociável aquela postura do civil com sua personalidade (ainda que eu possa estar errado).

Antes de chegar à cela, perguntei-me se eu apanharia dos policiais, se sofreria alguma espécie de agressão ou tortura psicológica. Não estou pensando em nada exagerado, como em guerras, mas apenas umas porradas, socos e pontapés. Não lembro exatamente o que aconteceu, mas primeiramente só chegamos à cela Chris e eu, os outros dois caras ficaram para trás, acho que eles queriam nos mandar para a cela aos pares, estilo casais. Defronte a cela havia uma câmera. No entanto, o policial civil pediu (leia-se ordenou) que nos dirigíssemos ao ponto cego da câmera, isto é, ao único lugar onde a câmera não conseguia filmar. Óbvio que ele não disse que era o ponto cego, mas era só olhar a posição da câmera e o local onde ele nos mandou ir, e fazer as deduções lógicas.

Esquematização do lugar onde ficamos no início de nossa prisão. Existe apenas
uma coluna que separa o banheiro do resto da cela, sem qualquer privacidade ou
dignidade para o detento. E a câmera não inibe abusos policiais.


Prosseguindo, o civil ordenou que Chris e eu fôssemos até aquele cantinho e tirássemos nossa roupa. Ah, então chegara o momento da nudez. O tão temido momento da nudez! Eu, que antes dos dezoito anos, achava que o momento da nudez viria junto com a maioridade, no alistamento militar, quando iria para o tiro de guerra e tomaria banho com mais trinta homens pelados. E que logo após fazer dezoito anos e superar o mito da nudez do alistamento militar, passei a considerar que a exposição de minha nudez se daria através do coito, de exame de próstata e de autópsia – não necessariamente nessa ordem e não necessariamente cumulativos. Foi com a mesma esperança que eu tenho de um dia ganhar na loteria sem jamais jogar, que eu fiz a pergunta a seguir ao civil, esperando receber um “não” como resposta: toda a roupa, senhor?

- Toda a roupa, porra!

Não bastasse a prisão, eu fui preso com um negro. Como ficar nu junto com um negro e não se sentir inferiorizado? Como não se sentir uma criança comparado aos dotes do coleguinha ao lado? Naquele momento, aprendi uma técnica de como ficar nu sem se envergonhar. Já dizia Chespirito, através de sua personagem Chiquinha: o que os olhos não veem o coração não sente.

Sendo assim, basta tirar a roupa sem olhar para seu próprio corpo. Não tome consciência de sua ridícula nudez, e tudo sairá bem. Ah, e também não tome consciência da nudez da outra pessoa, principalmente se ela for negra. A menos que seja no coito, aí eu recomendo que você o faça, pois a visão é um importante sentido durante a cópula. Mesmo sem olhar, pude notar que eu me despi rapidamente, terminando primeiro que o Chris. Ele estava com vergonha de mostrar algo. É claro que eu não vou dizer aqui do que se trata (óbvio que não é o genital), para não constrangê-lo, caso a identidade dele seja eventualmente conhecida por algum leitor deste blog. Nós fizemos um juramento, de que algumas coisas que aconteceram entre aquelas três paredes, atrás das grades, manteríamos em segredo e levaríamos conosco ao túmulo.

Até hoje o Chris me relata que suou em bicas enquanto tirava a roupa, tudo porque vira com o rabo do olho que o policial civil vestia uma luva médica nas mãos naquele momento. Sabe o que eu pensei naquele momento, Kily?, relatou-me Chris. Eu pensei assim: “será que eles fazem exame retal gratuito aqui no corró?”.

É incrível como a nossa mente tem a capacidade de nos pregar peças. Digo isso, pois tenho certeza absoluta de que Chris nesse momento alucinou, e logo depois, fui eu quem teve uma alucinação, sendo a dele visual e a minha auditiva. Em momento oportuno, conto como foi. Com Chris e eu nus em pelo, o civil ordenou que fizéssemos três agachamentos, ao que ele contou: UM! DOIS! TRÊS!

Satisfeito com o fato de nenhum artefato bélico ter sido expelido por nossos respectivos ânus, ele ordenou que colocássemos novamente a cueca (eu, além de cueca, humilhantemente usava também samba-canção). Fui vestindo minha roupa, pensando em minha amada namorada, para quem eu guardava a sete chaves a minha casta nudez, expondo-a totalmente apenas no recôndito de meu banheiro. E de repente, todo aquele voto de pureza jogado por água abaixo, tudo por culpa d’O Estado¹. Em seguida, mandou pegarmos nossas calças e tirarmos o cinto. Ele perguntou para Chris se ele estava com carteira, ao que ele respondeu que estava. Ele mandou Chris tirar o dinheiro da carteira, e ele obedeceu.

- Agora come!

Eu gelei. E se aquele desgraçado pedisse pra eu comer o meu dinheiro também? Eu estava com uma quantia considerável na algibeira, e não estava com fome a ponto de querer comer meu dinheiro. Preferia usá-lo para comprar algo mais apetitoso, quem sabe um pastel na Viçosa. Percebi que Chris não comeu o dinheiro e que ele informou quanto tinha, guardando-o na carteira a seguir. Posteriormente, Chris me contou que o civil dissera “conta”. Por algum motivo macabro, eu alucinei “come”.

Depois de ordenar que colocássemos nossas calças (porra!), entramos sem camisa e descalços em nosso novo lar, fedendo a urina (o lar fedia a urina, e não nós dois).

Nossos coleguinhas vieram em seguida, tendo sua humilhação dobrada, pois ficaram nus diante de nós. De minha parte, em respeito ao assujeitamento deles, olhei para o nada, evitando vê-los nus. Naquele momento, Chris e eu estávamos na cela, mas ainda de pé, com as mãos para trás, minhas calças caindo devido ao meu corpanzil raquítico e a ausência de cinto. Logo depois que os amiguinhos pelados entraram na cela (realmente, não consegui detectar o procedimento padrão para presidiários, pois eles permaneceram pelados, sem o mesmo direito que a nós foi dado, de vestir pelo menos as calças), o civil resolveu perguntar se todo mundo era di maior. Eu, Bin Laden – apelido carinhoso que o civil me deu durante meu período de reclusão, e que pegou até o final –, afirmei que sim, Chris também. Já os dois companheiros, bem mais altos que eu – o que não é lá grande coisa, sequer é motivo de orgulho, já que sou nanico –, afirmaram serem di menor. O outro policial, que agora acompanhava nosso policial-camareiro, soltou um “porra” (o vocábulo, e não o fluído corporal), que assim como todos os outros que eles falavam, não tinha qualquer função sintática na frase, denotando apenas uma fragilidade verbal dos membros da corporação.

Menores não podem ficar presos junto com maiores de idade. É essa a regra. Eles eram maiores do que eu, na altura, mas quem sou eu pra mudar o regulamento? Nem os policiais têm esse poder. Então a opção foi dar continuidade ao jogo segundo as regras pré-estabelecidas. Continuemos com a farsa!



CAPÍTULO 6 – OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO

Alguns minutos depois, um policial civil munido de câmera fotográfica foi até nossa cela registrar aquele momento. Foi tão lindo! Achei doce aquele gesto dele, imortalizando aquela confraternização na delegacia, deixando Chris e eu fazermos poses, tirando foto de frente, de perfil e num ângulo de 45 graus (ou de 135 graus, dependendo do seu ponto de vista).

Chris e eu sentamos no chão da sala, cheirando a fezes. Então percebi que Chris estava com os olhos brilhando, a olhar na direção de meus pés. Foi quando senti meu rosto ruborizar: pela primeira vez em muito tempo, alguém via meus pés nus. A parte mais sagrada de meu corpo, o meu mais poderoso órgão sexual estava ali, despido de qualquer meia, polainas ou outro calçado que pudesse escondê-lo da cobiça alheia. E justo para um podofílico (podo, do latim PODUS, que significa pés, não tem nada a ver com pedofílico).²

- Finalmente eu vi seus pés. – disse Chris, em tom zombeteiro.

Sem graça, eu dei alguma resposta ininteligível. Tentei lembrar-me da última vez que alguém vira meus pés. Provavelmente, fora a seis meses atrás, quando eu estava em minha casa, em minha cidade natal. Obviamente, as pessoas que viram minhas vergonhas foram meus pais e minha irmã, as únicas pessoas que tinham esse direito, pois sabia eu serem as únicas que não me atacariam ao vê-los. Nem minha namorada via meus pés – eu não permitia tal disparate –, senão tenho certeza que ela me faria de gato e sapato (sem sapato), me usando como seu objeto sexual. Eu bem sei as armas que eu tenho escondido dentro de minhas meias, por isso as guardo e uso com sabedoria.

Entendi, naquele momento, que este era um dos principais recursos para o bom adestramento na prisão. Um dos objetivos da prisão é o de tirar toda individualidade do preso, sua dignidade e sua personalidade. Meu cognome, Bin Laden, já era uma dica de que o objetivo dos policiais era o de me humilhar. Alguns minutos depois, enquanto Chris e eu continuávamos sentados no chão da cela, mais dois vagabundos foram levados para o mesmo cantinho nosso. Era a vez de sua humilhação particular. Particular, e nada íntima. Chris e eu pelo menos tivemos a sorte de não sermos observados por nenhum outro recluso, quando tirávamos nossas roupas. Não posso responder pelo Chris, mas de minha parte, procurei não manter contato visual com o lugar onde os novos companheiros estavam (o ponto cego da câmera). O que relato a seguir foi apenas auditivo, embora eu possa imaginar a cena que se passava, já que eu passara pela mesma coisa minutos antes. Os dois rapazes foram conduzidos ao cantinho do nudismo, onde o mesmo policial civil com quem eu antipatizei mandou que eles tirassem a roupa. Um dos caras tentou ser educado com o policial e questionar – educadamente – se aquilo realmente era necessário. Só que uma coisa é importante que seja dita sobre policiais: eles não querem educação; eles querem submissão.

Devido à insistência do recente preso em questionar a retirada de sua indumentária, o civil decidiu humilhá-lo mais um pouco, fazendo alusão à pequenez de seus órgãos genitais:

- Que que foi, tá com vergonha de mostrar o pinto? Você tem o pinto pequeno? Tira logo essa porra dessa roupa que agora eu quero ver o tamanho desse pinto!

Assim que ambos tiraram a roupa, o policial disse que realmente os ditos-cujos deles eram pequenos. Eu não vi os respectivos pênis, mas mesmo assim tenho que defendê-los: tenho certeza que mesmo que eles tivessem uma tromba de elefante entre as pernas, o civil ainda assim diria que tinham genitálias pequenas. A ideia aqui é muito simples, explorar um mito cultural grandemente difundido e com grande valor para o ego masculino, submetendo-os a mais uma de inúmeras outras formas de humilhação.

Outro recurso para o bom adestramento é a privação de qualquer contato com o mundo externo. Exceto, é claro, que estávamos numa delegacia que ficava ao lado do Estádio. Então, enquanto o Neymar estava sendo exibido para um bilhão de pessoas, fazendo gols e se consagrando ainda mais, eu estava ali, bem perto dele, preso, escondido do mundo, que até hoje não sabe quem eu sou, mesmo eu sendo muito mais inteligente que o futebolista. A janela da cela não me permitia ver nada, além de um ínfimo pedaço do céu. Como eu nunca fui escoteiro, não conseguia determinar o horário. Tirar a noção do tempo é um importante recurso para adestrar o sujeito. Sabe quando o ano está acabando e você diz assim: “nossa, mas como passou rápido, parece que foi esses dias mesmo que o ano estava começando!”? Então, na prisão é exatamente assim, só que ao contrário. Quando você acha que está preso há um ano, descobre que deu entrada na delegacia há dez minutos. Agora eu entendo por que os presidiários dos cinemas fazem pauzinhos na parede da cela. É uma tentativa de não enlouquecer e manter o controle sobre algo em suas vidas, no caso, sobre o tempo.

Depois de algum tempo (que não sei quanto tempo foi porque perdi a noção do tempo), quando os dois novos encarcerados estavam na mesma cela que Chris e eu, começamos a conversar sobre ideologia política, anarquismo e essas bobagens que poderia ser discutida numa lanchonete, dentro de um ônibus ou numa cela de delegacia. Quando um policial passou pela cela, um dos novatos (não sei o Chris, mas eu já me sentia o veterano do xadrez) perguntou para ele se poderia ler dentro da cela. Já que não estava fazendo nada, ele gostaria de ler para passar o tempo.

Não tem nenhum mal no cara ler na cela. Só tem um problema nisso. Os policiais não querem que o preso sinta-se confortável ali. Se o tédio é um modo de impor sofrimento no vagabundo, então entediado lhe deixaremos. Esse é um dos lemas da prisão.

O militarismo costuma ser marcado por sua disciplina, tanto no que diz respeito à postura física, imponência, conduta ilibada, quanto o respeito à hierarquia, ao comando superior. E esta característica do militarismo é de alguma forma passada para os presos. A questão do machismo, da virilidade, do falar grosso, “que nem homem”, também são questões próprias deste adestramento. Foi ali naquela cela que eu percebi que o que acontece na escola, o que vivenciei por pelo menos onze anos de minha vida em sala de aula, é apenas uma forma minimizada de tratamento disciplinar, se comparado ao que acontece ali na cela. O palavrão, usando o substantivo “porra” como interjeição, o uso de verbos no imperativo, fazem parte desse adestramento, que visa tirar não só a liberdade espacial e temporal, de determinar por quanto tempo eu tenho delimitada a geografia de onde posso transitar, mas visa também tirar a liberdade individual, de escolher, de decidir sobre mim mesmo, tentando mostrar que minha única opção é a submissão. Na escola, aprendi o a-bê-cê-dê. E ali na prisão, tentaram me ensinar o ô-bê-dê-cê.


¹ Posteriormente, um amigo meu também foi preso em manifestação, e fiquei pasmo quando vi que em seu boletim de ocorrência, no campo “vítima”, constava a seguinte expressão: O Estado.

² Esta terceira parte da narrativa está extremamente didática.


Continua...

Um comentário:

  1. Olá, Kily!
    Seu amigo Chris deve ter passado por maus bocados ao seu lado, fora sua infância sofrida da província norte-americana do Brooklyn.
    O texto foi bem escrito, com destaque para palavras que julgo incomuns tais como: zombeteiro, disparate, cognome, dentre outras.
    Seu ato falho (come/conta) demonstra um retorno á fase oral.
    Arrancou-me algumas risadas misturadas com angústia, pois fiquei imaginando se eu estivesse em uma situação semelhante.
    Parabéns pela sagacidade na escrita.

    Um grande abraço,
    mestre do Xadrez.

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