Continuação de minha narrativa. Se você não leu a primeira e a segunda parte, clique aqui e aqui, mas não aqui.
CAPÍTULO
5 – O CARCERÁRIO
Em primeiro lugar, preciso
dizer que eu fiquei numa cela. Mas eu não estava numa cadeia. Aquela cela serve
apenas para manter autores em flagrante delito até os burocratas do sistema
(delegado e juízes) decidirem o que fazer com os mesmos: encaminhar para a
Papuda (prisão local), conceder liberdade, atiçar fogo e jogar as cinzas no
lago Paranoá ou alguma outra decisão mirabolante da [in]Justiça.
O policial civil que
conduziu a nós quatro para nosso novo lar não parecia muito simpático. Até hoje
eu conjecturo o motivo dele estar tão puto. Estaria ele com raiva da gente? Era
tão estranho aquilo. Até cinco minutos atrás, ele sequer nos conhecia, nunca
nos vira antes (agora os policiais que participam da história não são os mesmos
de antes, em sua maioria, são civis). Nem sabia exatamente por que estávamos
sendo presos. Não desrespeitamos ele em nenhum momento. Então, o que era tudo
aquilo? Era fingimento? Será que fazia parte da necessidade de seu trabalho que
ele se imbuísse de uma expressão iracunda para transmitir maior seriedade ao
exercício de suas funções? Conforme postula Erving Goffman, seria essa uma “representação
do eu” daquele civil? Compreendo perfeitamente que cada um de nós, conforme
afirma Goffman, atua conforme o ambiente em que está inserido, o cenário que
está e os atores que interagem conosco. Mas mudanças tão drásticas e
contraditórias de comportamento para mim são difíceis de imaginar. Não consigo
pensar naquele civil num culto religioso, ou em seu lar, brincando com a filhinha
de três aninhos, todo doce, e depois ir cheio de ternura para perto da esposa.
Para mim é indissociável aquela postura do civil com sua personalidade (ainda
que eu possa estar errado).
Antes de chegar à cela,
perguntei-me se eu apanharia dos policiais, se sofreria alguma espécie de
agressão ou tortura psicológica. Não estou pensando em nada exagerado, como em
guerras, mas apenas umas porradas, socos e pontapés. Não lembro exatamente o
que aconteceu, mas primeiramente só chegamos à cela Chris e eu, os outros dois
caras ficaram para trás, acho que eles queriam nos mandar para a cela aos
pares, estilo casais. Defronte a cela havia uma câmera. No entanto, o policial
civil pediu (leia-se ordenou) que nos dirigíssemos ao ponto cego da câmera,
isto é, ao único lugar onde a câmera não conseguia filmar. Óbvio que ele não
disse que era o ponto cego, mas era só olhar a posição da câmera e o local onde
ele nos mandou ir, e fazer as deduções lógicas.
Esquematização do lugar onde ficamos no início de nossa prisão. Existe apenas
uma coluna que separa o banheiro do resto da cela, sem qualquer privacidade ou
dignidade para o detento. E a câmera não inibe abusos policiais.
Prosseguindo, o civil
ordenou que Chris e eu fôssemos até aquele cantinho e tirássemos nossa roupa.
Ah, então chegara o momento da nudez. O tão temido momento da nudez! Eu, que
antes dos dezoito anos, achava que o momento da nudez viria junto com a
maioridade, no alistamento militar, quando iria para o tiro de guerra e tomaria
banho com mais trinta homens pelados. E que logo após fazer dezoito anos
e superar o mito da nudez do alistamento militar, passei a considerar que a
exposição de minha nudez se daria através do coito, de exame de próstata e de
autópsia – não necessariamente nessa ordem e não necessariamente cumulativos.
Foi com a mesma esperança que eu tenho de um dia ganhar na loteria sem jamais
jogar, que eu fiz a pergunta a seguir ao civil, esperando receber um “não” como
resposta: toda a roupa, senhor?
- Toda a roupa, porra!
Não bastasse a prisão, eu
fui preso com um negro. Como ficar nu junto com um negro e não se sentir
inferiorizado? Como não se sentir uma criança comparado aos dotes do coleguinha
ao lado? Naquele momento, aprendi uma técnica de como ficar nu sem se
envergonhar. Já dizia Chespirito, através de sua personagem Chiquinha: o que os olhos não veem o coração não sente.
Sendo assim, basta tirar a
roupa sem olhar para seu próprio corpo. Não tome consciência de sua ridícula nudez,
e tudo sairá bem. Ah, e também não tome consciência da nudez da outra pessoa,
principalmente se ela for negra. A menos que seja no coito, aí eu recomendo que
você o faça, pois a visão é um importante sentido durante a cópula. Mesmo sem
olhar, pude notar que eu me despi rapidamente, terminando primeiro que o Chris.
Ele estava com vergonha de mostrar algo. É claro que eu não vou dizer aqui do
que se trata (óbvio que não é o genital), para não constrangê-lo, caso a
identidade dele seja eventualmente conhecida por algum leitor deste blog. Nós
fizemos um juramento, de que algumas coisas que aconteceram entre aquelas três paredes,
atrás das grades, manteríamos em segredo e levaríamos conosco ao túmulo.
Até hoje o Chris me relata
que suou em bicas enquanto tirava a roupa, tudo porque vira com o rabo do olho
que o policial civil vestia uma luva médica nas mãos naquele momento. Sabe o que eu pensei naquele momento, Kily?,
relatou-me Chris. Eu pensei assim: “será
que eles fazem exame retal gratuito aqui no corró?”.
É incrível como a nossa
mente tem a capacidade de nos pregar peças. Digo isso, pois tenho certeza
absoluta de que Chris nesse momento alucinou, e logo depois, fui eu quem teve
uma alucinação, sendo a dele visual e a minha auditiva. Em momento oportuno,
conto como foi. Com Chris e eu nus em pelo, o civil ordenou que fizéssemos três
agachamentos, ao que ele contou: UM! DOIS! TRÊS!
Satisfeito com o fato de
nenhum artefato bélico ter sido expelido por nossos respectivos ânus, ele
ordenou que colocássemos novamente a cueca (eu, além de cueca, humilhantemente
usava também samba-canção). Fui vestindo minha roupa, pensando em minha amada
namorada, para quem eu guardava a sete chaves a minha casta nudez, expondo-a totalmente
apenas no recôndito de meu banheiro. E de repente, todo aquele voto de pureza
jogado por água abaixo, tudo por culpa d’O Estado¹. Em seguida, mandou pegarmos
nossas calças e tirarmos o cinto. Ele perguntou para Chris se ele estava com
carteira, ao que ele respondeu que estava. Ele mandou Chris tirar o dinheiro da
carteira, e ele obedeceu.
- Agora come!
Eu gelei. E se aquele
desgraçado pedisse pra eu comer o meu dinheiro também? Eu estava com uma
quantia considerável na algibeira, e não estava com fome a ponto de querer
comer meu dinheiro. Preferia usá-lo para comprar algo mais apetitoso, quem sabe
um pastel na Viçosa. Percebi que Chris não comeu o dinheiro e que ele informou
quanto tinha, guardando-o na carteira a seguir. Posteriormente, Chris me contou
que o civil dissera “conta”. Por algum motivo macabro, eu alucinei “come”.
Depois de ordenar que
colocássemos nossas calças (porra!), entramos sem camisa e descalços em nosso
novo lar, fedendo a urina (o lar fedia a urina, e não nós dois).
Nossos coleguinhas vieram em
seguida, tendo sua humilhação dobrada, pois ficaram nus diante de nós. De minha
parte, em respeito ao assujeitamento deles, olhei para o nada, evitando vê-los
nus. Naquele momento, Chris e eu estávamos na cela, mas ainda de pé, com as
mãos para trás, minhas calças caindo devido ao meu corpanzil raquítico e a
ausência de cinto. Logo depois que os amiguinhos pelados entraram na cela
(realmente, não consegui detectar o procedimento padrão para presidiários, pois
eles permaneceram pelados, sem o mesmo direito que a nós foi dado, de vestir
pelo menos as calças), o civil resolveu perguntar se todo mundo era di maior. Eu, Bin Laden – apelido
carinhoso que o civil me deu durante meu período de reclusão, e que pegou até o
final –, afirmei que sim, Chris também. Já os dois companheiros, bem mais altos
que eu – o que não é lá grande coisa, sequer é motivo de orgulho, já que sou
nanico –, afirmaram serem di menor. O
outro policial, que agora acompanhava nosso policial-camareiro, soltou um “porra”
(o vocábulo, e não o fluído corporal), que assim como todos os outros que eles
falavam, não tinha qualquer função sintática na frase, denotando apenas uma
fragilidade verbal dos membros da corporação.
Menores não podem ficar
presos junto com maiores de idade. É essa a regra. Eles eram maiores do que eu,
na altura, mas quem sou eu pra mudar o regulamento? Nem os policiais têm esse
poder. Então a opção foi dar continuidade ao jogo segundo as regras
pré-estabelecidas. Continuemos com a farsa!
CAPÍTULO
6 – OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO
Alguns minutos depois, um
policial civil munido de câmera fotográfica foi até nossa cela registrar aquele
momento. Foi tão lindo! Achei doce aquele gesto dele, imortalizando aquela
confraternização na delegacia, deixando Chris e eu fazermos poses, tirando foto
de frente, de perfil e num ângulo de 45 graus (ou de 135 graus, dependendo do
seu ponto de vista).
Chris e eu sentamos no chão
da sala, cheirando a fezes. Então percebi que Chris estava com os olhos
brilhando, a olhar na direção de meus pés. Foi quando senti meu rosto
ruborizar: pela primeira vez em muito tempo, alguém via meus pés nus. A parte
mais sagrada de meu corpo, o meu mais poderoso órgão sexual estava ali, despido
de qualquer meia, polainas ou outro calçado que pudesse escondê-lo da cobiça
alheia. E justo para um podofílico (podo, do latim PODUS, que significa pés,
não tem nada a ver com pedofílico).²
- Finalmente eu vi seus pés.
– disse Chris, em tom zombeteiro.
Sem graça, eu dei alguma
resposta ininteligível. Tentei lembrar-me da última vez que alguém vira meus
pés. Provavelmente, fora a seis meses atrás, quando eu estava em minha casa, em
minha cidade natal. Obviamente, as pessoas que viram minhas vergonhas foram
meus pais e minha irmã, as únicas pessoas que tinham esse direito, pois sabia
eu serem as únicas que não me atacariam ao vê-los. Nem minha namorada via meus
pés – eu não permitia tal disparate –, senão tenho certeza que ela me faria de
gato e sapato (sem sapato), me usando como seu objeto sexual. Eu bem sei as
armas que eu tenho escondido dentro de minhas meias, por isso as guardo e uso com
sabedoria.
Entendi, naquele momento,
que este era um dos principais recursos para o bom adestramento na prisão. Um
dos objetivos da prisão é o de tirar toda individualidade do preso, sua
dignidade e sua personalidade. Meu cognome, Bin Laden, já era uma dica de que o
objetivo dos policiais era o de me humilhar. Alguns minutos depois, enquanto
Chris e eu continuávamos sentados no chão da cela, mais dois vagabundos foram
levados para o mesmo cantinho nosso. Era a vez de sua humilhação particular.
Particular, e nada íntima. Chris e eu pelo menos tivemos a sorte de não sermos
observados por nenhum outro recluso, quando tirávamos nossas roupas. Não posso
responder pelo Chris, mas de minha parte, procurei não manter contato visual
com o lugar onde os novos companheiros estavam (o ponto cego da câmera). O que
relato a seguir foi apenas auditivo, embora eu possa imaginar a cena que se
passava, já que eu passara pela mesma coisa minutos antes. Os dois rapazes
foram conduzidos ao cantinho do nudismo, onde o mesmo policial civil com quem
eu antipatizei mandou que eles tirassem a roupa. Um dos caras tentou ser
educado com o policial e questionar – educadamente – se aquilo realmente era
necessário. Só que uma coisa é importante que seja dita sobre policiais: eles
não querem educação; eles querem submissão.
Devido à insistência do
recente preso em questionar a retirada de sua indumentária, o civil decidiu
humilhá-lo mais um pouco, fazendo alusão à pequenez de seus órgãos genitais:
- Que que foi, tá com
vergonha de mostrar o pinto? Você tem o pinto pequeno? Tira logo essa porra
dessa roupa que agora eu quero ver o tamanho desse pinto!
Assim que ambos tiraram a
roupa, o policial disse que realmente os ditos-cujos deles eram pequenos. Eu
não vi os respectivos pênis, mas mesmo assim tenho que defendê-los: tenho
certeza que mesmo que eles tivessem uma tromba de elefante entre as pernas, o
civil ainda assim diria que tinham genitálias pequenas. A ideia aqui é muito
simples, explorar um mito cultural grandemente difundido e com grande valor
para o ego masculino, submetendo-os a mais uma de inúmeras outras formas de
humilhação.
Outro recurso para o bom
adestramento é a privação de qualquer contato com o mundo externo. Exceto, é
claro, que estávamos numa delegacia que ficava ao lado do Estádio. Então,
enquanto o Neymar estava sendo exibido para um bilhão de pessoas, fazendo gols
e se consagrando ainda mais, eu estava ali, bem perto dele, preso, escondido do
mundo, que até hoje não sabe quem eu sou, mesmo eu sendo muito mais inteligente
que o futebolista. A janela da cela não me permitia ver nada, além de um ínfimo
pedaço do céu. Como eu nunca fui escoteiro, não conseguia determinar o horário.
Tirar a noção do tempo é um importante recurso para adestrar o sujeito. Sabe
quando o ano está acabando e você diz assim: “nossa, mas como passou rápido,
parece que foi esses dias mesmo que o ano estava começando!”? Então, na prisão
é exatamente assim, só que ao contrário. Quando você acha que está preso há um
ano, descobre que deu entrada na delegacia há dez minutos. Agora eu entendo por
que os presidiários dos cinemas fazem pauzinhos na parede da cela. É uma
tentativa de não enlouquecer e manter o controle sobre algo em suas vidas, no
caso, sobre o tempo.
Depois de algum tempo (que
não sei quanto tempo foi porque perdi a noção do tempo), quando os dois novos
encarcerados estavam na mesma cela que Chris e eu, começamos a conversar sobre
ideologia política, anarquismo e essas bobagens que poderia ser discutida numa
lanchonete, dentro de um ônibus ou numa cela de delegacia. Quando um policial
passou pela cela, um dos novatos (não sei o Chris, mas eu já me sentia o
veterano do xadrez) perguntou para ele se poderia ler dentro da cela. Já que
não estava fazendo nada, ele gostaria de ler para passar o tempo.
Não tem nenhum mal no cara
ler na cela. Só tem um problema nisso. Os policiais não querem que o preso
sinta-se confortável ali. Se o tédio é um modo de impor sofrimento no
vagabundo, então entediado lhe deixaremos. Esse é um dos lemas da prisão.
O militarismo costuma ser
marcado por sua disciplina, tanto no que diz respeito à postura física,
imponência, conduta ilibada, quanto o respeito à hierarquia, ao comando
superior. E esta característica do militarismo é de alguma forma passada para
os presos. A questão do machismo, da virilidade, do falar grosso, “que nem
homem”, também são questões próprias deste adestramento. Foi ali naquela cela
que eu percebi que o que acontece na escola, o que vivenciei por pelo menos
onze anos de minha vida em sala de aula, é apenas uma forma minimizada de
tratamento disciplinar, se comparado ao que acontece ali na cela. O palavrão,
usando o substantivo “porra” como interjeição, o uso de verbos no imperativo,
fazem parte desse adestramento, que visa tirar não só a liberdade espacial e
temporal, de determinar por quanto tempo eu tenho delimitada a geografia de
onde posso transitar, mas visa também tirar a liberdade individual, de
escolher, de decidir sobre mim mesmo, tentando mostrar que minha única opção é
a submissão. Na escola, aprendi o a-bê-cê-dê. E ali na prisão, tentaram me
ensinar o ô-bê-dê-cê.
¹ Posteriormente, um amigo
meu também foi preso em manifestação, e fiquei pasmo quando vi que em seu
boletim de ocorrência, no campo “vítima”, constava a seguinte expressão: O
Estado.
² Esta terceira parte da narrativa
está extremamente didática.
Continua...
Olá, Kily!
ResponderExcluirSeu amigo Chris deve ter passado por maus bocados ao seu lado, fora sua infância sofrida da província norte-americana do Brooklyn.
O texto foi bem escrito, com destaque para palavras que julgo incomuns tais como: zombeteiro, disparate, cognome, dentre outras.
Seu ato falho (come/conta) demonstra um retorno á fase oral.
Arrancou-me algumas risadas misturadas com angústia, pois fiquei imaginando se eu estivesse em uma situação semelhante.
Parabéns pela sagacidade na escrita.
Um grande abraço,
mestre do Xadrez.