segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Memórias do Cárcere - Parte II

Segunda parte de minha narrativa. Confira a primeira parte aqui.

Nota: Eu sou preconceituoso. Como todo mundo, tenho meus preconceitos. O problema não é ter preconceitos, mas sim ser incapaz de admití-los. Um de meus preconceitos é com a polícia, em geral. Embora a minha crítica seja com a corporação policial, a organização em si, muitas vezes eu penso através de metonímias, aplicando o mesmo pensamento que tenho em relação ao todo às partes. No entanto, quero deixar isso bem claro, pois nem todo policial é arrogante, prepotente ou abusivo. Só que automaticamente, eu os julgo assim. Infelizmente - para mim, para a sociedade e para todos os policiais -, essas características acabam sendo apenas um sintoma de todo um sistema doente e corrompido. A culpa disso não é dos policiais. Eles também são vítimas.


CAPÍTULO 3 – OS CORPOS DÓCEIS

Um exemplo de um corpo dócil.

- DEITA NO CHÃO! DEITA NO CHÃO!

Mas eu não estou com sono!

Joguei-me ao solo, sendo tão competente em obedecer ao comando do policial que parecia um transeunte pulando na frente do carro do CJ no GTA San Andreas – desculpem-me a nova analogia ao jogo, mas é que são muitas as semelhanças com a vida real. Para entenderem melhor, clique aqui. Na queda, eu consegui me ferir, não de forma letal, mas ralando o ombro direito e posteriormente ficando com um hematoma em formato circular, cuja circunferência tinha o tamanho próximo ao da de uma bola de tênis. De quadra.

Deita no chão! Deita no chão!

Mesmo sem ver o policial, eu tinha consciência de que a arma ainda era apontada para mim. Senti o segundo policial agachando-se perto de mim, segurando o meu braço direito e levando-o até as costas, com tanto carinho que nem minha mãe faria igual. Creio que o policial estava curioso para ver se eu era flexível, ele queria ver se era capaz de me fazer tocar minha própria nuca com meu dedo médio, estando meu cotovelo atrás das costas. Correção: ele sabia que conseguiria isso, o que ele queria mesmo era verificar se teria que me causar fraturas ou não para conseguí-lo.

Ilustração de como é feita a imobilização policial. Acho ela importante em determinados contextos.
Mas não oferecemos resistência, não estávamos armados e não fomos pegos em flagrante delito para recebermos tal tratamento.

Então voltamos ao início do texto. Se era objetivo do policial causar-me dor, ele estava sendo bem sucedido. Agora, se era seu objetivo levar-me a implorar clemência, neste aspecto ele não alcançou sucesso (ele também não conseguiu me fazer perder os controles esfincterianos). Eu tenho um enorme nariz. Com uma capacidade descomunal de sugar oxigênio. E naquele momento, ele trabalhava afoito na busca por mais ar, na tentativa de encontrar suas propriedades analgésicas e reduzir o desconforto causado pelo policial nas minhas costas. Se alguém olhasse para a estranha figura que eu fazia naquele momento, se lembraria de um peixe pulando no chão, de modo tolo, tentando sobreviver.

O que mais me irrita em lembrar daquele momento, é que eu não tinha nenhuma arma na mão, nenhuma pedra, coquetel molotov ou qualquer coisa que justificasse o excesso de poder do qual o policial fazia uso naquele momento. Provavelmente, se depois eu tivesse a audácia de perguntar ao policial porque tivera aquele comportamento, ele talvez dissesse a mesma frase nacionalmente atribuída ao Capitão Bruno, três meses depois: “Foi porque eu quis”. Quiçá acrescentasse um “porra”, no final da frase, por força do hábito.

Imagem autoexplicativa.

Outros policiais se aproximavam. Um deles “deixou o pé” na minha cabeça, seu enorme coturno me fazendo fechar os olhos. Do estranho ângulo de visão que eu tinha naquele momento, vi o policial que havia me chutado, em seu ar imponente, com mão no coldre, peito pra fora e barriga pra dentro, como manda o código de conduta do bom policial.

Opa, você bateu na minha cabeça, mas eu sei que foi sem querer, então tá desculpado, seu policial.

Esta fala aconteceu apenas na minha cabeça posteriormente, quando rememorei os acontecimentos daquela tarde. Evidentemente, o policial não fez qualquer menção ao pequeno – mas ainda assim desnecessário – chute que me dera. Na remota possibilidade de ter sido um choque acidental, não estava em seus planos pedir desculpas. Afinal, eu era apenas um vagabundo. E policial que é policial não pede desculpas, quem dirá para um vagabundo.

Eu nunca fui preso antes, sequer havia recebido uma abordagem de rotina por um policial. Mas já assisti Polícia 24 Horas o suficiente para compreender como se dá o processo de assujeitamento e submissão que os policiais impõem sobre o bandido – porque aqui no Brasil é assim: quem vai preso é bandido. As pessoas de bem não vão presas. Inclusive, se elas forem muito honradas, podem até galgar cargos honrados, lá no Senado ou na Câmara dos Deputados.

Prosseguindo, quando recebi ordens para levantar, o fiz calado. Mesmo antes de receber os comandos do policial, mantive as mãos para trás – em posição militar de “descansar” – e minha cabeça abaixada, iniciando a farsa que se dava início naquele momento: minha submissão física simbolizava uma submissão moral aos policiais; eles fingiam que têm esse poder, eu fingia que é real e todo mundo fingia que acreditava.

Quando levantei, percebi o Chris deitado próximo de onde eu estava – ele também não estava com sono, mas o pedido do policial era tão gentil que não havia como resistir. Aqui preciso glorificar seu gesto, pois Chris teria conseguido escapar da “abordagem” policial, mas foi altruísta ao ponto de colocar sua preocupação comigo acima de sua própria segurança e, principalmente, acima de seus instintos de sobrevivência.
 
A imagem do dia: enquanto os holofotes se voltavam para Neymar, ali ao lado do Estádio, no escuro
centenas de pessoas eram abordadas por uma despreparada força policial, agindo com excesso de poder.

Fui colocado lado a lado de Chris. Em seguida, fui parcamente revistado pelo policial, que não estava muito animado para tocar meu corpo a procura de facas, granadas e, quem sabe, metralhadoras. Pra quem não sabe, eu sou cabeludo e barbudo, e costumo amarrar o meu cabelo, seja penteado para trás ou repartido no meio, num rabo de cavalo frouxo. Só ressalto essa informação, porque a seguir o policial puxou-me com força pelo cabelo, me obrigando a dar dois passos cambaleantes em sua direção, tendo destreza para não perder o equilíbrio, já que eu ainda estava em posição de assujeitamento foucaultiano. Posteriormente, Chris disse que o policial me tratou igual uma quenga. Realmente, eu me senti uma prostituta sendo puxada pelo cabelo enquanto é possuída por trás.

O policial torceu meu braço, aí não sei se foi necessário ou não – acho que nunca é, afinal, o que eu poderia fazer ali? Fugir? Matar todos os policiais armados até os dentes da manifestação e me intitular o Emiliano Zapata brasileiro? –, e finalmente me colocou as “pulseiras” nas mãos. Como eu estava com as mãos para trás, nem pude perceber se fiquei bonito de algemas.

Lembro-me de um policial ter feito uma ou outra pergunta. Recordo-me ainda do policial abaixando a cabeça de meu amigo, dizendo que era melhor ele abaixar a cabecinha, senão o próprio policial teria que fazê-lo. Bem intimidador. Finalmente, fomos forçados a entrar na viatura. Os policiais queriam nos levar para dar um passeio. E era um convite bem persuasivo. Impossível recusar. Até que a parte de trás da viatura não era de todo desconfortável. Só ficou apertadinho quando tivemos que dividir a traseira do carro com mais dois vagabundos como nós. Só que pros policiais, fundo de viatura é igual coração de mãe: sempre tem espaço para mais um.

Seria falso dizer que eu não estava com medo. Seria uma mentira das grandes! Eu estava cagando de medo. Não literalmente. Por sorte eu havia tomado meu remédio para copracrasia naquela manhã, antes das provas da faculdade. Racionalizando, eu não tinha a menor convicção de que os policiais me levariam para uma delegacia. Ah, como eu queria que levassem! Nunca desejei tanto ser preso. Mas naquele momento, coisas absurdas – ou não – se passaram por minha cabeça. Os hômis podiam muito bem simplesmente nos levar para o meio do mato, dar quatro disparos e resolver tudo por ali. Afinal, quem nos conhecia? Quem poderia provar que havíamos sido presos? Eu realmente pensei “cara, eu me ferrei legal agora!” quando percebi que estava isolado na hora da prisão, que não havia nenhuma testemunha para filmar a minha cara e a cara dos policiais que me prendiam. A falta de imagens e de testemunhas é um perigo tremendo em manifestações, especialmente numa cidade gigante como Brasília.

Pensei em mamãe. Pensei em papai, em minha irmã. Pensei em minha querida namorada e também em meus amigos. Todos eles, que sequer sabiam que eu tinha ido numa manifestação. Pensei num colega de minha idade que morrera meses antes, e em como aquilo ainda mexia comigo. Pensei em minha própria morte, seria eu o primeiro a ser executado ou o último? Seriam os demais que veriam meu corpo tombar após o tiro, o sangue a jorrar abundantemente de meu corpo, já sem vida, ou seria eu quem veria um a um meus coleguinhas de bacu serem mortos, toda a tortura psicológica antecedendo cada execução, para enfim, ao final, chegar a minha vez? Como as pessoas que eu amava reagiriam ao saber que eu estava morto? Qual seria a reação de colegas e amigos de faculdade ao saberem que duas das mentes mais brilhantes da turma haviam sido friamente assassinadas por policiais? Fiz minhas preces a Papai do Céu, desejando de todo o meu coração que aquelas não fossem as últimas.

É indescritível a felicidade e o peso que saíram de cima de mim quando vi que estacionaram o carro defronte a delegacia. Nunca estive tão convicto de que poderia morrer a qualquer momento quanto estive naqueles poucos minutos entre o local de minha prisão e a delegacia. Mesmo depois de passar inúmeros e verdadeiros cagaços na cidade grande, achando que seria assaltado, roubado, sequestrado ou algo do tipo, foi vindo daqueles que deveriam me proteger que passei a situação de maior medo da minha vida. Desci todo feliz e faceiro – apenas por dentro, pois por fora eu tinha que manter as aparências e continuar minha encenação goffmaniana de assujeitado foucaultiano.


A Representação do Eu na Vida Cotidiana, livro que embasa a teoria de Erving Goffman, que 
afirma que atuamos socialmente, conforme o contexto em que estamos. Brinco um pouco com
a ideia central do pensamento goffmaniano em meu texto.

Ao comando do policial (sem sequer um “por favor”, acreditam numa coisa dessas?) descemos da viatura cabisbaixos. Agora eu compreendia que aquela cara de arrependimento que eu cansei de ver nos programas do Datena e afins não passava de uma representação. Ninguém se sentia culpado de nada, aliás, sentia sim, todo mundo se sente culpado de ter sido pego. Marchamos para dentro da delegacia, como se dançássemos “Que Bonita a Sua Roupa”. Com a cabeça abaixada, não vi os abutres da imprensa ali na porta, filmando, fotografando e imortalizando aquele belo momento de nossas vidas.

Nossa entrada triunfal na delegacia. O primeiro e o quarto cara são "di menores", o segundo sou eu
(o que tem o cabelo de viado bicha) e o terceiro é o meu amigo Chris.


CAPÍTULO 4 – INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS

Em Brasília, aquela era a segunda vez que eu adentrava uma delegacia. A primeira na qualidade de autor em flagrante delito (qual delito mesmo, seu policial?). Fomos colocados num canto, um ao lado do outro, todos olhando para a parede, ainda com as algemas nas mãos. Embora eu não tivesse visto, tenho certeza que havia várias pessoas na delegacia naquele momento, cidadãos resolvendo problemas de suas vidas, aguardando para serem atendidos pelos agentes da polícia civil. Nossa, mas que humilhação! Mas você deve ter morrido de vergonha por aquela situação humilhante, de ser tratado como bandido, não é Kily? Sou obrigado a confessar que não. Não me senti envergonhado, tampouco humilhado. Naquele momento, devo dizer que não senti nada disso. Isso não era mais tão importante assim. Eu tinha preocupações maiores naquele momento, como a de saber qual a repercussão daquela manifestação, tanto em âmbito local quanto em âmbito nacional. Será que alguém que me conhecia poderia saber de minha prisão pela televisão ou pela internet?

O problema era que no meu bolso direito da frente, estava o meu celular. Mas eu sabia que as regras da minha vida haviam mudado a partir do momento em que o policial apontara a arma para mim e me mandara deitar no chão. A partir daquele momento, eu perdi todos os meus direitos, em especial o direito de ir e vir. Eu perdi o direito de por a mão no meu bolso (aí de mim se o tivesse feito naquela ocasião, o policial provavelmente interpretaria como uma tentativa de sacar alguma arma, e me alvejaria sem dó), perdi o direito de cutucar o nariz, perdi o direito de roer as unhas, perdi o direito de fazer uma ligação e também perdi o direito de querer que alguém estivesse se preocupando comigo enquanto eu estava no cárcere.

Dentro da delegacia, estava um homem de aproximadamente 50 anos, elegantemente vestido de terno. Ele nos dirigiu a palavra, apesar de comandos em contrário dos policiais e, creio eu, do delegado. Ele se apresentou como sendo advogado do movimento, e que era para ficarmos tranquilos que em poucas horas ele nos tiraria dali e que era para nos recusarmos a dar qualquer depoimento, resguardando-nos em nosso direito de permanecer em silêncio.

Evidentemente, notei que os ânimos estavam alterados. Creio que policiais, sejam militares ou civis, não gostam da imprensa bisbilhotando o seu trabalho. E desta vez, haveria forte pressão do lado de fora da delegacia para saber tudo o que acontecia do lado de dentro.

Começava ali um período de espera. E para fins informativos, contarei a seguir o que acontece no sub-mundo do cárcere, onde câmeras não penetram, sobre o qual os filmes e documentários tentam falar a respeito, mas que tive a felicidade de vivenciar, de uma maneira muito reducionista, é claro, algumas horinhas deste ambiente.

Michel Foucault atuando na peça shakespereana "Hamlet", com a famosa frase "Ser ou não ser? Eis a questão."
Além desse trabalho, ele também atuou no filme "A Família Addams", como Tio Chico.

 
Vigiar e Punir, outro livro que brinco muito durante este texto. Escrito pelo historiador e filósofo Michel Foucault,
ele trabalha com a ideia do sistema prisional e sua lógica. Relaciono apenas um pouco de meu texto com a ideia
foucaultiana, brincando com os títulos dos capítulos do autor francês.


Continua...

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