Penúltima parte da narrativa sobre minha aventura prisional.
CAPÍTULO
7 – O PANOPTISMO
Um recurso para o bom
adestramento, que discutirei em separado, é o do panoptismo, ideia inaugurada
pelo desocupado do filósofo Jeremy Bentham e posteriormente emprestada pelo
invertido – no sentido freudiano – do Michel Foucault. Antes que isso se torne
uma aula chata de filosofia, vou explicar o cerne da ideia do panoptismo: criar
um ambiente cuja geografia transmita ao prisioneiro a sensação de que ele é/pode
estar sendo observado ininterruptamente, sem que de fato seja necessário que as
autoridades efetuem a observação o tempo todo.
A câmera disposta na frente
da cela tinha esse intuito. A geografia da cela, confesso, não foi tão bem
planejada para esse fim. Mas tudo bem, aquilo não era uma cadeia de verdade,
então não podia se exigir muito. A vigilância era suficiente para nos
controlar. Embora, ninguém ali pretendesse fugir. Não que pudéssemos fazê-lo,
caso quiséssemos. Esse é um bom caso em que a premissa “querer é poder” não se
aplica.
R, um dos autores desse
blog, tinha uma teoria tão boa quanto a teoria de Bentham. Na casa onde cresci
e vive até me mudar para Brasília, o banheiro era em formato de “L”, conforme
imagem a seguir:
Representação do banheiro da casa onde cresci. A parte mais clara esquematiza o meu provável campo de visão
quando estou tomando banho debaixo do chuveiro. A parte mais escura ilustra a minha eterna dúvida: haverá
alguém me espiando enquanto estou nu fazendo minhas abluções, com minhas vergonhas de fora?
Eu disse para R que, apesar
da porta do banheiro estar fechada com chave, quando eu tomava banho, sempre
temia que alguém entrasse no banheiro e ficasse espreitando, me espiando
enquanto eu tomava o banho (sim, eu sou egocêntrico e acho que todo mundo quer
me ver pelado). Para evitar tal sentimento, eu costumava tomar banho sempre voltado
para o resto do banheiro, todo o tempo que eu podia, jamais para a parede do
fundo do banheiro. É claro que eu não olhava sempre, pois me virava para pegar
o sabonete, para lavar o corpo e também fechava os olhos para enxaguar o
cabelo, cheio de espuma do shampoo. A grande teoria do R diz o seguinte: você
nunca poderá ter certeza de que não tem ninguém te observando tomando banho,
você só pode ter certeza de que não está sendo observado nos momentos em que
você está observando se alguém o observa ou não. Acho que essa teoria é tão boa
quanto a anterior – de Bentham – para ilustrar minha ideia sobre a observação
policial no cárcere.
Aproximadamente trinta
minutos depois (ou pode ter sido várias horas depois, pois perdi a noção de
tempo no cárcere) fomos visitados por policiais, que nos assujeitaram, mandando
que pegássemos nossos pertences e seguíssemos em fila indiana o caminho que
eles nos indicavam. Eu já estava feliz, achando que minha reclusão estava para
terminar precocemente, bem mais rápido do que eu esperava. Mas eu me enganara.
Eles estavam apenas nos mudando de cela. Depois eu soube que era porque uma
fêmea fora presa, a primeira até ali, e devido à falta de celas disponíveis,
teriam que mudar nosso grupo de lugar, para que nossa antiga cela servisse de
cela vip para a garota. Nada contra isso. Mas é curioso. Regras são regras.
Podem tirar nossa roupa, nossa dignidade e nos subjugar à vontade. Mas botar
uma garota na mesma cela que vários rapazes vai contra as regras, pois
poderíamos estuprá-la. Aliás, bem provável que isso acontecesse, afinal, éramos
quatro bandidos perigosíssimos e incontroláveis, transbordando testosterona e
loucos para saciar nosso enorme apetite sexual; e não um grupo de quatro
pessoas com argumentos razoáveis num protesto pacífico, que estariam presos com
uma garota, que fazia parte do mesmo protesto e, portanto, era uma companheira,
ainda que desconhecida, ligada a nós por uma mesma causa – e pela mesma
injustiça.
Em nosso novo lar, já havia,
para surpresa minha, entre quinze a vinte pessoas (não me recordo o número
exato). A primeira impressão foi pesada – e ao mesmo tempo engraçada –, a de
ver tanta gente numa mesma cela. Não sabia se eram presos políticos como nós
quatro, ou se eram de outras ocorrências alheias a da manifestação. Logo depois,
eu soube que estávamos todos no mesmo barco furado. O único negro da cela, ao
ver Chris, exclamou, em tom jocoso:
- Até que enfim chegou outro
negro aqui!
Todos riram de sua frase,
mostrando o ar descontraído da cela. Ali todo mundo já estava amigo, contando
sua trajetória daquele dia, os acontecimentos que culminaram em suas
respectivas prisões. O anteriormente único negro citado, contou que foi
atropelado por policiais para ser preso. Fiquei surpreso, o que teria feito
aquele sujeito, para ser tratado pior do que animal? Devo ressaltar que reparei
que ele tinha apenas uma mão. Eu soube posteriormente, há apenas alguns dias
atrás, através de texto escrito por esse cara em jornal da UnB, que ele nascera
daquele modo, e sofrera humilhações absurdas por parte de policiais por conta
de sua raça e de sua deficiência. Parece que, depois dos policiais (que já
estavam com sangue nos olhos desde o início da manifestação, visando ele,
provavelmente por conta de sua cor) o capturaram, atropelando-o e algemando-o,
em dado momento suas calças começaram a cair e ele pediu para que um dos
policiais as erguesse por ele. Em tom zombeteiro, o policial teria respondido
para ele próprio levantar, numa dupla afronta: primeiro pelo fato dele estar
algemado, segundo por zombar da deficiência dele (posso ter subvertido um pouco
da história original de meu companheiro de prisão, peço desculpas se o fiz, o
objetivo não foi esse).
Imagem que mostra um dos vários atropelamentos acidentais sem querer querendo de propósito, ocorridos no dia da
manifestação. Este vídeo foi exibido ao vivo dentro do programa global Caldeirão do Huck, na Central da Copa. Num
desses atropelamentos, a vítima foi um de meus colegas de cárcere, que foi convertido como acusado.
Mesmo muitos de nós tendo
passado por abusos e excessos policiais, todos estávamos tranquilos na cela,
pois tínhamos a consciência tranquila e a certeza de que havia muitas imagens
favorecendo os manifestantes. O pessoal continuava narrando suas aventuras, de
modo bem humorado. Quando o grupo começava a rir ou a falar um pouco mais alto,
aparecia um policial e nos dava bronca:
- Cala a boca, porra! Tão
pensando que isso aqui é feira ou o quê?!
O tédio era tão grande na
cela que, como observamos posteriormente, todos já havíamos trocado de lugar na
cela umas três vezes, em relação ao lugar original que cada um ocupava no
início. Aqui eu preciso abrir um parêntesis e contar algo bem engraçado que
aconteceu na cela. Foi quando um advogado da OAB foi até a cela e emprestou seu
celular para todos que quisessem fazer uma ligação. Eu não consegui entrar em
contato com ninguém, mas isso não importa agora. O Chris, ao contrário de mim,
conseguiu fazer sua ligação. Todo mundo conversava animadamente, enquanto as
pessoas faziam suas ligações. Mas no exato instante que a ligação de Chris foi
completada e ele falou, coincidiu um silêncio na cela.
- Oi amor. – disse Chris.
Essas palavras foram
suficientes para todos exclamarem um “huuum” zombeteiro, tirando um sarro da
cupidice de meu amigo.
CAPÍTULO
8 – A PUNIÇÃO GENERALIZADA
Recebemos algumas visitas
durante nossa prisão. Dois advogados se ofereceram para assessorar os membros
do movimento que foram presos, um deles, o advogado citado anteriormente quando
da nossa chegada à delegacia.
Outra visita que recebemos
foi da Deputada Distrital e psicóloga Érika Kokay, que inclusive entrou na cela
e tocou meu ombro (o são, não o ferido). Eu nunca mais lavei o ombro desde
então. Brincadeiras à parte, pouco conheço da trajetória política de Kokay, sei
apenas de sua luta LGBT e em favor dos Direitos Humanos, sendo esta última a
razão dela estar ali. Ou poderia ainda ser lobby
político, já que ano que vem é ano de eleições. É difícil concluir quais eram
as motivações dela estar ali. O discurso foi bonito. Suas intenções permanecem
uma incógnita para mim. A conclusão foi que ela convidou para que todos
comparecerem ao gabinete dela no Congresso, pois ela gostaria que fizéssemos
nossos depoimentos na Comissão de Direitos Humanos (aquela bem polêmica,
presidida pelo Deputado Marco Feliciano).
A Deputada Distrital Erika Kokay, que nos visitou no xadrez.
Os ânimos na delegacia
estavam alterados, pois a mídia cobria o ocorrido, ou seja, o trabalho deles
era de certa forma fiscalizado pela imprensa. Kokay só conseguiu entrar ali por
conta de seu prestígio e de sua posição política. Algo inusitado aconteceu quando
ela entrou na cela. Nós estávamos tossindo, pois o cheiro de spray de pimenta
se fez muito forte dentro da cela. Há quem cogite a hipótese de algum policial
ter ido pelo lado de fora da delegacia e espirrado spray de pimenta através da
janela da cela, apenas para nos torturar naquele já apertado espaço. Não posso
afirmar isso, mas o fato é que todos começaram a sentir irritação na garganta e
a tossir simultaneamente. E para sorte nossa, Kokay chegou logo após o cheiro
ficar mais forte, e também tossiu e sentiu um pouquinho do “tempero” apimentado
da polícia.
Após a saída de Kokay, fomos
visitados por policiais militares de diversas unidades, em especial do Choque,
que iam até a grade da cela acompanhados de um policial civil, aí apontavam uma
lanterna pra nossa cara e o policial do Choque apontava o dedo para um de nós.
Alguns acham que ele estava escolhendo qual era o mais bonitinho, outros qual
ele gostaria de adotar. Eu ainda acho que os policiais do Choque, após uma
violenta ação policial, estavam tentando inverter a mesa e acusar alguns de nós
de os agredirem! Que absurdo! Como é que um civil desarmado agride um policial
do Choque que está com armas com bala de borracha, escudos e cassetetes, e
ainda por cima junto de um pelotão igualmente armado e articulado entre si?
Alguns de nós, os lesionados
(exceto eu, pois minha lesão não era ocasionada por agressão, e sim por burrice
minha), foram retirados da cela para atendimento médico, entre eles o cara
anteriormente citado, atropelado pelos policiais.
O primeiro policial civil
que nos abordara chegou à cela um bom tempo após a saída de Kokay, dizendo que
assinaríamos um papel em duas vias e depois seríamos dispensados. Disse que não
era para lermos o documento, pois ele não tinha a noite toda – porra!
Ele chamou nome por nome
para que assinasse os papeis. Um dos detentos rabiscou uma assinatura, gerando
um enorme transtorno para si mesmo.
- O que você fez aí? Essa é
a sua assinatura? – disse o civil.
- É. – respondeu o detento,
com ar assustado.
- Tá assim no seu RG?
- Mais ou menos...
- Tá de brincadeira com a
minha cara, porra! Cê acha que eu to brincando aqui? Agora você vai fazer
igualzinha a outra assinatura, senão você não sai dessa cela aqui essa noite!
Porra!
Aparentando medo, o cara
copiou a primeira assinatura que inventara e, por um milagre, conseguiu
reproduzi-la.
Uma das orientações
do manual do bom manifestante é: ser for preso, jamais assine nada sem ler.
Praticamente ninguém leu o documento, na euforia de sair logo dali e também
pela ameaça do policial civil. Alguns, como eu, passaram rapidamente os olhos
pelo documento, fazendo uma leitura dinâmica de seu conteúdo. Mas o fato é que
todos estavam ansiosos para terem de volta algo que lhes custava muito e que só
foram perceber assim que a perderam: suas liberdades.
Continua...
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