sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Memórias do Cárcere - Parte IV

Penúltima parte da narrativa sobre minha aventura prisional.


CAPÍTULO 7 – O PANOPTISMO

Um recurso para o bom adestramento, que discutirei em separado, é o do panoptismo, ideia inaugurada pelo desocupado do filósofo Jeremy Bentham e posteriormente emprestada pelo invertido – no sentido freudiano – do Michel Foucault. Antes que isso se torne uma aula chata de filosofia, vou explicar o cerne da ideia do panoptismo: criar um ambiente cuja geografia transmita ao prisioneiro a sensação de que ele é/pode estar sendo observado ininterruptamente, sem que de fato seja necessário que as autoridades efetuem a observação o tempo todo.

A câmera disposta na frente da cela tinha esse intuito. A geografia da cela, confesso, não foi tão bem planejada para esse fim. Mas tudo bem, aquilo não era uma cadeia de verdade, então não podia se exigir muito. A vigilância era suficiente para nos controlar. Embora, ninguém ali pretendesse fugir. Não que pudéssemos fazê-lo, caso quiséssemos. Esse é um bom caso em que a premissa “querer é poder” não se aplica.

R, um dos autores desse blog, tinha uma teoria tão boa quanto a teoria de Bentham. Na casa onde cresci e vive até me mudar para Brasília, o banheiro era em formato de “L”, conforme imagem a seguir:

 Representação do banheiro da casa onde cresci. A parte mais clara esquematiza o meu provável campo de visão
quando estou tomando banho debaixo do chuveiro. A parte mais escura ilustra a minha eterna dúvida: haverá
alguém me espiando enquanto estou nu fazendo minhas abluções, com minhas vergonhas de fora?


Eu disse para R que, apesar da porta do banheiro estar fechada com chave, quando eu tomava banho, sempre temia que alguém entrasse no banheiro e ficasse espreitando, me espiando enquanto eu tomava o banho (sim, eu sou egocêntrico e acho que todo mundo quer me ver pelado). Para evitar tal sentimento, eu costumava tomar banho sempre voltado para o resto do banheiro, todo o tempo que eu podia, jamais para a parede do fundo do banheiro. É claro que eu não olhava sempre, pois me virava para pegar o sabonete, para lavar o corpo e também fechava os olhos para enxaguar o cabelo, cheio de espuma do shampoo. A grande teoria do R diz o seguinte: você nunca poderá ter certeza de que não tem ninguém te observando tomando banho, você só pode ter certeza de que não está sendo observado nos momentos em que você está observando se alguém o observa ou não. Acho que essa teoria é tão boa quanto a anterior – de Bentham – para ilustrar minha ideia sobre a observação policial no cárcere.

Aproximadamente trinta minutos depois (ou pode ter sido várias horas depois, pois perdi a noção de tempo no cárcere) fomos visitados por policiais, que nos assujeitaram, mandando que pegássemos nossos pertences e seguíssemos em fila indiana o caminho que eles nos indicavam. Eu já estava feliz, achando que minha reclusão estava para terminar precocemente, bem mais rápido do que eu esperava. Mas eu me enganara. Eles estavam apenas nos mudando de cela. Depois eu soube que era porque uma fêmea fora presa, a primeira até ali, e devido à falta de celas disponíveis, teriam que mudar nosso grupo de lugar, para que nossa antiga cela servisse de cela vip para a garota. Nada contra isso. Mas é curioso. Regras são regras. Podem tirar nossa roupa, nossa dignidade e nos subjugar à vontade. Mas botar uma garota na mesma cela que vários rapazes vai contra as regras, pois poderíamos estuprá-la. Aliás, bem provável que isso acontecesse, afinal, éramos quatro bandidos perigosíssimos e incontroláveis, transbordando testosterona e loucos para saciar nosso enorme apetite sexual; e não um grupo de quatro pessoas com argumentos razoáveis num protesto pacífico, que estariam presos com uma garota, que fazia parte do mesmo protesto e, portanto, era uma companheira, ainda que desconhecida, ligada a nós por uma mesma causa – e pela mesma injustiça.

Em nosso novo lar, já havia, para surpresa minha, entre quinze a vinte pessoas (não me recordo o número exato). A primeira impressão foi pesada – e ao mesmo tempo engraçada –, a de ver tanta gente numa mesma cela. Não sabia se eram presos políticos como nós quatro, ou se eram de outras ocorrências alheias a da manifestação. Logo depois, eu soube que estávamos todos no mesmo barco furado. O único negro da cela, ao ver Chris, exclamou, em tom jocoso:

- Até que enfim chegou outro negro aqui!

Todos riram de sua frase, mostrando o ar descontraído da cela. Ali todo mundo já estava amigo, contando sua trajetória daquele dia, os acontecimentos que culminaram em suas respectivas prisões. O anteriormente único negro citado, contou que foi atropelado por policiais para ser preso. Fiquei surpreso, o que teria feito aquele sujeito, para ser tratado pior do que animal? Devo ressaltar que reparei que ele tinha apenas uma mão. Eu soube posteriormente, há apenas alguns dias atrás, através de texto escrito por esse cara em jornal da UnB, que ele nascera daquele modo, e sofrera humilhações absurdas por parte de policiais por conta de sua raça e de sua deficiência. Parece que, depois dos policiais (que já estavam com sangue nos olhos desde o início da manifestação, visando ele, provavelmente por conta de sua cor) o capturaram, atropelando-o e algemando-o, em dado momento suas calças começaram a cair e ele pediu para que um dos policiais as erguesse por ele. Em tom zombeteiro, o policial teria respondido para ele próprio levantar, numa dupla afronta: primeiro pelo fato dele estar algemado, segundo por zombar da deficiência dele (posso ter subvertido um pouco da história original de meu companheiro de prisão, peço desculpas se o fiz, o objetivo não foi esse).

Imagem que mostra um dos vários atropelamentos acidentais sem querer querendo de propósito, ocorridos no dia da
manifestação. Este vídeo foi exibido ao vivo dentro do programa global Caldeirão do Huck, na Central da Copa. Num
desses atropelamentos, a vítima foi um de meus colegas de cárcere, que foi convertido como acusado.


Mesmo muitos de nós tendo passado por abusos e excessos policiais, todos estávamos tranquilos na cela, pois tínhamos a consciência tranquila e a certeza de que havia muitas imagens favorecendo os manifestantes. O pessoal continuava narrando suas aventuras, de modo bem humorado. Quando o grupo começava a rir ou a falar um pouco mais alto, aparecia um policial e nos dava bronca:

- Cala a boca, porra! Tão pensando que isso aqui é feira ou o quê?!

O tédio era tão grande na cela que, como observamos posteriormente, todos já havíamos trocado de lugar na cela umas três vezes, em relação ao lugar original que cada um ocupava no início. Aqui eu preciso abrir um parêntesis e contar algo bem engraçado que aconteceu na cela. Foi quando um advogado da OAB foi até a cela e emprestou seu celular para todos que quisessem fazer uma ligação. Eu não consegui entrar em contato com ninguém, mas isso não importa agora. O Chris, ao contrário de mim, conseguiu fazer sua ligação. Todo mundo conversava animadamente, enquanto as pessoas faziam suas ligações. Mas no exato instante que a ligação de Chris foi completada e ele falou, coincidiu um silêncio na cela.

- Oi amor. – disse Chris.

Essas palavras foram suficientes para todos exclamarem um “huuum” zombeteiro, tirando um sarro da cupidice de meu amigo.


CAPÍTULO 8 – A PUNIÇÃO GENERALIZADA

Recebemos algumas visitas durante nossa prisão. Dois advogados se ofereceram para assessorar os membros do movimento que foram presos, um deles, o advogado citado anteriormente quando da nossa chegada à delegacia.

Outra visita que recebemos foi da Deputada Distrital e psicóloga Érika Kokay, que inclusive entrou na cela e tocou meu ombro (o são, não o ferido). Eu nunca mais lavei o ombro desde então. Brincadeiras à parte, pouco conheço da trajetória política de Kokay, sei apenas de sua luta LGBT e em favor dos Direitos Humanos, sendo esta última a razão dela estar ali. Ou poderia ainda ser lobby político, já que ano que vem é ano de eleições. É difícil concluir quais eram as motivações dela estar ali. O discurso foi bonito. Suas intenções permanecem uma incógnita para mim. A conclusão foi que ela convidou para que todos comparecerem ao gabinete dela no Congresso, pois ela gostaria que fizéssemos nossos depoimentos na Comissão de Direitos Humanos (aquela bem polêmica, presidida pelo Deputado Marco Feliciano).

A Deputada Distrital Erika Kokay, que nos visitou no xadrez.


Os ânimos na delegacia estavam alterados, pois a mídia cobria o ocorrido, ou seja, o trabalho deles era de certa forma fiscalizado pela imprensa. Kokay só conseguiu entrar ali por conta de seu prestígio e de sua posição política. Algo inusitado aconteceu quando ela entrou na cela. Nós estávamos tossindo, pois o cheiro de spray de pimenta se fez muito forte dentro da cela. Há quem cogite a hipótese de algum policial ter ido pelo lado de fora da delegacia e espirrado spray de pimenta através da janela da cela, apenas para nos torturar naquele já apertado espaço. Não posso afirmar isso, mas o fato é que todos começaram a sentir irritação na garganta e a tossir simultaneamente. E para sorte nossa, Kokay chegou logo após o cheiro ficar mais forte, e também tossiu e sentiu um pouquinho do “tempero” apimentado da polícia.

Após a saída de Kokay, fomos visitados por policiais militares de diversas unidades, em especial do Choque, que iam até a grade da cela acompanhados de um policial civil, aí apontavam uma lanterna pra nossa cara e o policial do Choque apontava o dedo para um de nós. Alguns acham que ele estava escolhendo qual era o mais bonitinho, outros qual ele gostaria de adotar. Eu ainda acho que os policiais do Choque, após uma violenta ação policial, estavam tentando inverter a mesa e acusar alguns de nós de os agredirem! Que absurdo! Como é que um civil desarmado agride um policial do Choque que está com armas com bala de borracha, escudos e cassetetes, e ainda por cima junto de um pelotão igualmente armado e articulado entre si?

Alguns de nós, os lesionados (exceto eu, pois minha lesão não era ocasionada por agressão, e sim por burrice minha), foram retirados da cela para atendimento médico, entre eles o cara anteriormente citado, atropelado pelos policiais.

O primeiro policial civil que nos abordara chegou à cela um bom tempo após a saída de Kokay, dizendo que assinaríamos um papel em duas vias e depois seríamos dispensados. Disse que não era para lermos o documento, pois ele não tinha a noite toda – porra!

Ele chamou nome por nome para que assinasse os papeis. Um dos detentos rabiscou uma assinatura, gerando um enorme transtorno para si mesmo.

- O que você fez aí? Essa é a sua assinatura? – disse o civil.

- É. – respondeu o detento, com ar assustado.

- Tá assim no seu RG?

- Mais ou menos...

- Tá de brincadeira com a minha cara, porra! Cê acha que eu to brincando aqui? Agora você vai fazer igualzinha a outra assinatura, senão você não sai dessa cela aqui essa noite! Porra!
Aparentando medo, o cara copiou a primeira assinatura que inventara e, por um milagre, conseguiu reproduzi-la.

Uma das orientações do manual do bom manifestante é: ser for preso, jamais assine nada sem ler. Praticamente ninguém leu o documento, na euforia de sair logo dali e também pela ameaça do policial civil. Alguns, como eu, passaram rapidamente os olhos pelo documento, fazendo uma leitura dinâmica de seu conteúdo. Mas o fato é que todos estavam ansiosos para terem de volta algo que lhes custava muito e que só foram perceber assim que a perderam: suas liberdades.


Continua...

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