Última parte de minha
primeira experiência prisional, ocorrida no fatídico dia 15 de junho último.
CAPÍTULO
9 – O CORPO DOS CONDENADOS
Depois que todos assinaram o
termo comprometendo-se a comparecer na Justiça quando intimado, fomos retirados
aos pares da cela, cada um pegando o saco de lixo preto com nossos pertences, e
formando nova fila na escada da delegacia. Como estratégia para evitar a
imprensa, sairíamos pelos fundos da delegacia, indo direto para o Instituto
Médico Legal.
Fomos todos colocados em um
enorme camburão, que não sei descrever muito bem como era. Só destaco que o
mesmo era relativamente confortável, tendo duas portas na parte traseira e uma
divisória que se estendia por toda a parte destinada aos presos, de modo que
fomos divididos em dois grupos. Havia assentos para cada um de nós. Depois de
sentar na ponta do camburão, comecei a colocar meu cinto, minha camiseta e a
calçar meu tênis.
Durante o trajeto, pela
primeira vez com seus aparelhos celulares depois da prisão, todos começaram a
tentar contato com familiares. Escutava um companheiro gritando que recebera
mensagem de alguém dizendo que o viu na televisão. Outro que estava no G1. E
assim por diante. Tentei contato com minha querida namorada, mas em vão. Tentei
falar com minha mãe, pois temia que ela tivesse visto algo pela TV e estivesse
angustiada pela falta de notícias. Liguei para todo mundo que eu podia, mas sem
sucesso. Enquanto os demais já contatavam familiares e amigos e os acalmava,
contando sua odisseia, eu sentia-me sozinho, sem ninguém a se importar comigo.
Foi tão triste.
Subitamente, recebi uma
ligação. Era uma colega da faculdade. Que por sinal quase não falava comigo.
Julguei que ela tivesse visto algo e estivesse preocupada comigo, para me ligar
na noite de sábado. Quando atendi, em meio ao barulho do camburão, o seguinte
diálogo se desenrolou:
- Oi Kily, tudo bem?
- Oi Berenice, mais ou
menos, e com você?
- Eu estou bem. Deixa eu te
perguntar: você está com seu notebook por perto agora?
- Não, não to. Eu to no
camburão.
- Ah ta. – disse Berenice,
com a voz mais natural do mundo. – É que se você tivesse com ele, eu ia te
pedir um favor, queria ver se você podia me ajudar com um trabalho da facul.
Fiquei perplexo, pois ela
não percebera o que eu dissera antes. Já que ninguém se preocupara comigo até
então, Berenice seria o anjo enviado do céu para quem eu primeiramente
compartilharia minha aventura.
- Berenice, não posso te
ajudar agora. É que eu to preso.
Senti um súbito silêncio do
outro lado da linha, como se Berenice digerisse o sentido daquelas palavras.
- Mentira? – disse ela,
incrédula. – Como?
- Verdade. Nas manifestações
de hoje à tarde, na abertura da Copa das Confederações.
- Sério? Mas como você tá?
Tá bem? Tá machucado?
- Eu to bem. Na verdade eu
estou indo para o IML agora fazer exame de corpo de delito. Fiquei preso até
agora e daqui a pouco serei solto.
Conversamos por mais um ou
dois minutos, ela me dando forças e dizendo que morava ali perto, que, caso eu
precisasse, podia ligar para ela que ela me buscava, me levava para casa e
faria o que estivesse ao seu alcance. Tranquilizei-a dizendo que ligaria sim,
caso fosse necessário. Despedimo-nos e desligamos.
Algum tempo depois, já no
IML, abriram as portas do camburão e só descia aquele que era chamado para os
exames. Fui um dos últimos a ser chamado. Enquanto aguardava que me chamassem,
eu recapitulava tudo o que vivenciara naquele dia. Desde as provas na
faculdade, pela manhã, o trajeto para as manifestações, as manifestações, a
prisão, o cárcere e até mesmo a nudez. Sentia-me triste, pois sempre me
conservei imaculado para minha linda namorada, para que apenas ela contemplasse
a minha maravilhosa nudez, após tirar minha roupa ansiosamente, como quem
desembrulha um bombom Sonho de Valsa.
Que
droga, era para você ser a próxima pessoa a me ver pelequinha, namorada! Mas eu
prometo que a próxima pessoa será você! Eu juro por tudo que é mais sagrado!
Vou defender a minha nudez com unhas e dentes daqui para a frente, e os
próximos olhos que contemplarão meu corpo como veio ao mundo, além de mim,
serão os seus., pensei comigo.
Então fui chamado. Assim que
entrei na saleta onde se encontrava o médico e o cumprimentei educadamente, o
mesmo disse para mim:
- Tire a roupa.
De
novo? Oh não!, pensei. Lá
vamos nós de novo!
- Precisa tirar toda a
roupa? – indaguei, de modo suplicante.
Depois de um segundo de
hesitação, o médico respondeu:
- Tire a camiseta e apenas
abaixe a calça e a cueca.
Depois de barganhar e conseguir
uma pequena conquista (pelo menos meus pés estariam a salvo de serem expostos
desta vez), obedeci ao comando do doutor. Ele me observou, indagando se eu
sofrera alguma lesão. Afirmei que não, mas o hematoma em meu ombro direito
negou veementemente.
- E isto daí? – perguntou o
médico, apontando para a marca.
Expliquei para ele como
consegui aquilo. Mesmo não se tratando de uma lesão causada por agressão
policial, ele aproximou-se de mim com uma fita métrica e mediu o diâmetro do
hematoma, anotando em seguida num papel. Ordenou que eu me virasse. De costas
para o médico, aguardei que ele avaliasse minha bela bunda e o resto de meu
corpo. Depois ele ordenou que eu me virasse novamente. Neste momento, tive um
pensamento mórbido. Imaginei o médico com um pandeiro, tocando um som enquanto
eu sambava com o meu gingado paulista, rodando em tom dançante até voltar a
ficar de frente para ele, no momento em que ele cantasse um “pedi pra parar,
parou!”.
Encerrada a inspeção,
vesti-me e saí da saleta do médico, voltando para o camburão, decidido
novamente a cumprir meu juramento anterior, de guardar meu corpitxo para minha
namorada.
Depois que todos foram
examinados pelo médico, um policial disse que chamaria um por um pelo nome
completo, o mesmo deveria depois repetir o nome completo e olhar para uma
câmera, em seguida estaria livre, juridicamente falando.
Novamente, fui um dos
últimos a ser solto para a liberdade. Senti-me um pássaro sendo solto de uma
gaiola, pronto para bater asas e voar pelos céus. Foi lindo!
CAPÍTULO
10 – A MITIGAÇÃO DAS PENAS
Assim que saí, encontrei-me
com três conhecidos meus, bons companheiros e amigos, que não deixaram nem o
Chris nem a mim na mão, oferecendo apoio enquanto estávamos encarcerados. O
grupo fez uma roda ali mesmo na frente do IML e cantou uma música por mim
desconhecida, tirou foto para o jornal Correio Braziliense e também concedeu
entrevista para a única emissora de televisão ali presente, a Record. Foi
decepcionante, achei que eu ficaria com os olhos doendo de tantos flashes que
seriam disparados quando eu saísse do cárcere. Mas eu ainda saí bem
pequenininho no Correio Braziliense, lá ao fundo da foto.
Quando contei para minha mãe
que eu fui preso, ela ficou uma fera, disse que eu estava fazendo coisa errada
e aquele pensamento bem brasileiro mesmo, de que quem não comete crime não vai
preso.
Enquanto estávamos presos,
anotamos os e-mails na camiseta de um dos companheiros, que se comprometeu a
mandar e-mail para todo mundo, para que não perdêssemos contato e que continuássemos
conversando. Mantivemos contato por algum tempo. Embora eu ainda tenha o e-mail
de todos, não temos conversado mais.
Um dos companheiros escreveu
um excelente texto em um jornal da UnB, muito bacana mesmo (bem melhor do que
esse texto aqui).
Seis meses e meio depois,
posso dizer que nada aconteceu. Não fui intimado para nada, e creio que não
serei intimado. Na ocorrência que eu retirei numa outra delegacia logo depois,
um absurdo: a ocorrência citava os artigos dos “infratores”, como se todos tivessem
cometido os mesmos crimes. Um ou dois dos presos foi flagrado portando maconha,
mas a ocorrência tratava como se todos nós estivéssemos portando e usando
substância entorpecente.
Não há provas contra nós.
Apenas a palavra dos policiais. Existe um vídeo, que pode ser visto no Youtube¹,
em que apareço caminhando lentamente, atravessando a rua, em meio a outros
manifestantes. Fui preso sem fazer nada. Os outros manifestantes ao meu redor
estavam interditando uma rua. A ação deles pode ser classificada como crime?
Não sei, não entendo o suficiente de leis. O que eu entendo é que o crime não
pode ser generalizado, o crime é individual e eu não posso ser punido pela ação
de outras pessoas. Não existe nenhuma prova contra mim, assim como tenho
certeza que não existe nada contra inúmeros outros manifestantes. Vi pessoas
que foram presas estando apenas AJOELHADAS com um cartaz na mão, que inclusive
dizia “mais amor por favor”.
Que cada um faça o seu
julgamento sobre tudo o que aconteceu. Para mim, há vilões e mocinhos dos dois
lados: do lado da polícia e do lado dos manifestantes. Mas o importante também,
é que não se perca o foco, de quem realmente têm sido os grandes vilões desse
país: uma classe política corrupta e pouco preocupada em acabar com as mazelas
sociais deste país.
¹ Posso ser visto no vídeo atravessando a rua entre 3min51seg e 3min55seg.
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