terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Boas Festas

Última postagem de 2013.

Este texto é dedicado a minha querida amiga Youssef, representando todas as pessoas que são chatas e não apreciam muito as festas de final de ano. O texto é puramente descritivo, baseado em um caso vivenciado por mim. Não estou pedindo para que ninguém passe a pensar como eu, apenas peço um pouco mais de tolerância e respeito para com os milhares de Grinchs misantropos espalhados pela sociedade.

Eu estava na minha baia, sentado junto ao computador, redigindo mais um dos inúmeros documentos a que estava acostumado. Era apenas mais um dia rotineiro no escritório. Quando digo “rotineiro”, mas não quero que o leitor entenda esse adjetivo como algo negativo. Pelo contrário, eu o utilizo como uma das coisas mais maravilhosas que poderiam me acontecer.

Cito que eu estava em minha amada e repetitiva rotina, porque ela estava para ser abalada. Mal sabia eu que eu estava prestes a receber um enorme chute em meus testículos. Graças a Deus, não literalmente, pelo menos. A dona Goreth, minha chefe – e a mulher mais doce que eu já conheci depois de mamãe e vovó –, seria a responsável pelo chute.

Dona Goreth era uma velhinha cuja idade era uma incógnita (mas que deveria ter pelo menos uns setenta anos), magra e de aspecto frágil, que parecia que se espirrássemos em sua direção, ela sairia voando igual uma folha de árvore abandonada ao vento. Brincávamos que ela era tão leve que parecia precisar de uma âncora amarrada a uma das pernas em dias de vendaval. Difícil acreditar que uma mulher desse porte pudesse chutar meus colhões.

Enquanto eu trabalhava a dona Goreth, apesar de ser minha chefe, gentilmente bateu em minha porta pedindo licença pela interrupção, pedindo que eu a encontrasse na cozinha, onde os funcionários tomavam um cafezinho e tinham alguns momentos de descontração no dia de trabalho. Eu estava salvando o documento no computador, quando percebi que ela chamava os demais funcionários em suas baias. Marchamos todos em direção a sua sala.

Com os doze funcionários apertadamente reunidos na cozinha, a dona Goreth anunciou, com sua voz suave:

- Gente, tá chegando o Natal e nós precisamos marcar a data da nossa confraternização e fazer o sorteio do amigo secreto.

Creio que não foi apenas um chute, mas sim dois chutes, um em cada gônada: confraternização e amigo secreto!

Ouvi alguns aplausos e risinhos de felicidade, todos satisfeitos pela festinha. O povinho do escritório é bem festeiro, adora essas ocasiões. O único alienígena ali sou eu.

- Só que vocês sabem muito bem que nosso escritório possui uma peculiaridade: é no Natal que tem mais serviço, que o negócio aperta. Hoje é dia 20 de novembro, então falta pouco mais de um mês pro Natal ainda. Só que eu queria marcar nossa festinha pra no máximo daqui duas semanas. – após uma pausa, continuou, olhando para mim e mais duas colegas de trabalho – Eu queria saber de vocês três, que são os que estudam, como que tá as aulas, as provas? Já acabou, não acabou, como é que é?

- Ah, a minha acaba sexta-feira agora, só faltam mais duas provas, dona Goreth. – disse uma das funcionárias, a minha esquerda.

- Pra mim faltam quatro provas ainda, mas até semana que vem acabam todas. – respondeu a funcionária a minha direita.

Após um momento de silêncio, percebi que todos olhavam para mim, que era o único que ainda não respondera a dona Goreth. Só percebi isso quando recebi uma discreta cotovelada da funcionária da direita.

- Eu ainda tenho todas as provas e alguns trabalhos para fazer, dona Goreth, nem sei quando acabam, mas não se preocupem comigo. Podem fazer a festinha sem mim mesmo, não quero atrapalhar vocês. – disse eu, torcendo para ela morder a isca e aceitar minha ideia.

- DE JEITO NENHUM! – falou dona Goreth, em tom sério, mas maternal. – Todo mundo ter que participar, Kily, inclusive você! Faço questão da sua presença lá. Trate de ver até quando vão suas provas e me dê uma resposta amanhã, para marcarmos o dia da confraternização.

- Sim senhora. – respondi.

- Por ora, vamos fazer o sorteio do amigo secreto. – disse ela, sorrindo e pegando em sua mesa uma caixinha improvisada, que continha papeizinhos dobrados, cada um contendo o nome dos funcionários da empresa. Eram 14 papeis, sendo doze com os nossos nomes, mais um com o nome da dona Goreth e outro com o do Seu Chico, marido dela e nosso patrão.

Gelei. Não queria participar do amigo secreto. Entretanto, em nenhum momento dona Goreth disse que a participação era facultativa. Pelo visto, não teria jeito, eu teria que abdicar de minha vontade e encarar aquela confraternização como um ônus pelo excelente emprego que eu tinha dentro da empresa. As frustrações que eu não passava trabalhando, acabaria passando na confraternização. Ou “festinha”, como preferiam chamar meus coleguinhas.

- Dona Goreth, eu acho que eu não quero participar do amigo secreto. – arrisquei, depois de tomar coragem.

Todos olharam para mim. Dona Goreth olhou para mim surpresa, como se de súbito meu rosto estivesse repleto de chagas. Ela disse, naquele tom em que não cabia contra-argumento:

- Mas é claro que você quer participar! Todo mundo vai participar! – e depois, soltou o seu mais belo sorriso.

Ela distribuiu papel um a um, inclusive para mim, ignorando meu desejo, como se eu estivesse cometendo um erro de julgamento. Ao final, sobraram dois papeis.

- Esse aqui é o meu e o outro eu vou deixar na mesa do Francisco. – disse ela, já que seu simpático marido não se encontrava no momento.

Mas que droga! Mas que grande droga! Mas que drogona! Sem o amigo secreto, eu poderia faltar da festinha e inventar uma desculpa depois. Dor de cabeça, morte na família, ônibus quebrado, ou outro imprevisto. Qualquer coisa! Mas com amigo secreto, eu não teria coragem de deixar uma pessoa sem presente. Detesto amigo secreto, mas eu acho uma sacanagem que participa de amigo secreto e falta no dia da revelação ou se esquece do presente. São os maiores trolls do fim de ano.

Após um burburinho, quando o pessoal conversava e brincava na cozinha, uns sorrindo e dizendo “que bacana! Adorei ter tirado essa pessoa!”, outros fingindo tentar ver quem as demais pessoas tiraram, outros ainda dando indireta sobre o presente que gostariam de ganhar, eu sorria e tentava fingir que eu era um ser humano normal ali naquela cozinha.

Todos voltaram altivos e aparentemente mais motivados para o trabalho após aquilo. Agora só dependiam de mim para marcar o dia da festinha. Voltei para minha baia, sentei-me em minha cadeira, querendo me afundar no trabalho pelas duas horas que restavam antes de ir embora, e esquecer aquela festinha estúpida. Foi quando lembrei que eu tinha me esquecido de abrir meu papelzinho e ver quem era meu amigo ou minha amiga secreta.

Que droga, do jeito que eu sou azarado, vou tirar a pessoa que menos tenho afinidade nesse escritório. To até vendo já! Vou abrir esse papel e vai estar o nome da Bárbara aqui. Ao menos se eu tirasse a Suzana, que é a única que eu conheço bem os gostos... aí pelo menos diminuiria a minha desgraça... Acabar jamais.

Abri o papel. Vi o nome ali escrito. E sorri.

Obrigado meu Deus. Eu te amo do fundo do meu coração! Ô glória!

No papel, escrito numa caligrafia dura e feia, meu próprio nome: Kily! Eu havia tirado eu mesmo! Eu estava fora do amigo secreto! Já comecei a fazer planos. Iria ver em que dia cairia a minha última prova e diria para dona Goreth no dia seguinte para marcar a confraternização no dia dessa prova. Depois, eu inventaria a desculpa de que a prova fora remarcada de última hora e por isso eu não pude ir. Quanto ao amigo secreto, bem, para isso eu inventaria uma desculpa depois. O importante era que eu estava salvo.

Até 2014, com o Pra Gente Rir rumo a 1 milhão de visualizações!

Memórias do Cárcere - Parte V

Última parte de minha primeira experiência prisional, ocorrida no fatídico dia 15 de junho último.


CAPÍTULO 9 – O CORPO DOS CONDENADOS

Depois que todos assinaram o termo comprometendo-se a comparecer na Justiça quando intimado, fomos retirados aos pares da cela, cada um pegando o saco de lixo preto com nossos pertences, e formando nova fila na escada da delegacia. Como estratégia para evitar a imprensa, sairíamos pelos fundos da delegacia, indo direto para o Instituto Médico Legal.

Fomos todos colocados em um enorme camburão, que não sei descrever muito bem como era. Só destaco que o mesmo era relativamente confortável, tendo duas portas na parte traseira e uma divisória que se estendia por toda a parte destinada aos presos, de modo que fomos divididos em dois grupos. Havia assentos para cada um de nós. Depois de sentar na ponta do camburão, comecei a colocar meu cinto, minha camiseta e a calçar meu tênis.

Durante o trajeto, pela primeira vez com seus aparelhos celulares depois da prisão, todos começaram a tentar contato com familiares. Escutava um companheiro gritando que recebera mensagem de alguém dizendo que o viu na televisão. Outro que estava no G1. E assim por diante. Tentei contato com minha querida namorada, mas em vão. Tentei falar com minha mãe, pois temia que ela tivesse visto algo pela TV e estivesse angustiada pela falta de notícias. Liguei para todo mundo que eu podia, mas sem sucesso. Enquanto os demais já contatavam familiares e amigos e os acalmava, contando sua odisseia, eu sentia-me sozinho, sem ninguém a se importar comigo. Foi tão triste.

Subitamente, recebi uma ligação. Era uma colega da faculdade. Que por sinal quase não falava comigo. Julguei que ela tivesse visto algo e estivesse preocupada comigo, para me ligar na noite de sábado. Quando atendi, em meio ao barulho do camburão, o seguinte diálogo se desenrolou:

- Oi Kily, tudo bem?

- Oi Berenice, mais ou menos, e com você?

- Eu estou bem. Deixa eu te perguntar: você está com seu notebook por perto agora?

- Não, não to. Eu to no camburão.

- Ah ta. – disse Berenice, com a voz mais natural do mundo. – É que se você tivesse com ele, eu ia te pedir um favor, queria ver se você podia me ajudar com um trabalho da facul.

Fiquei perplexo, pois ela não percebera o que eu dissera antes. Já que ninguém se preocupara comigo até então, Berenice seria o anjo enviado do céu para quem eu primeiramente compartilharia minha aventura.

- Berenice, não posso te ajudar agora. É que eu to preso.

Senti um súbito silêncio do outro lado da linha, como se Berenice digerisse o sentido daquelas palavras.

- Mentira? – disse ela, incrédula. – Como?

- Verdade. Nas manifestações de hoje à tarde, na abertura da Copa das Confederações.

- Sério? Mas como você tá? Tá bem? Tá machucado?

- Eu to bem. Na verdade eu estou indo para o IML agora fazer exame de corpo de delito. Fiquei preso até agora e daqui a pouco serei solto.

Conversamos por mais um ou dois minutos, ela me dando forças e dizendo que morava ali perto, que, caso eu precisasse, podia ligar para ela que ela me buscava, me levava para casa e faria o que estivesse ao seu alcance. Tranquilizei-a dizendo que ligaria sim, caso fosse necessário. Despedimo-nos e desligamos.

Algum tempo depois, já no IML, abriram as portas do camburão e só descia aquele que era chamado para os exames. Fui um dos últimos a ser chamado. Enquanto aguardava que me chamassem, eu recapitulava tudo o que vivenciara naquele dia. Desde as provas na faculdade, pela manhã, o trajeto para as manifestações, as manifestações, a prisão, o cárcere e até mesmo a nudez. Sentia-me triste, pois sempre me conservei imaculado para minha linda namorada, para que apenas ela contemplasse a minha maravilhosa nudez, após tirar minha roupa ansiosamente, como quem desembrulha um bombom Sonho de Valsa.

Que droga, era para você ser a próxima pessoa a me ver pelequinha, namorada! Mas eu prometo que a próxima pessoa será você! Eu juro por tudo que é mais sagrado! Vou defender a minha nudez com unhas e dentes daqui para a frente, e os próximos olhos que contemplarão meu corpo como veio ao mundo, além de mim, serão os seus., pensei comigo.

Então fui chamado. Assim que entrei na saleta onde se encontrava o médico e o cumprimentei educadamente, o mesmo disse para mim:

- Tire a roupa.

De novo? Oh não!, pensei. Lá vamos nós de novo!

- Precisa tirar toda a roupa? – indaguei, de modo suplicante.

Depois de um segundo de hesitação, o médico respondeu:

- Tire a camiseta e apenas abaixe a calça e a cueca.

Depois de barganhar e conseguir uma pequena conquista (pelo menos meus pés estariam a salvo de serem expostos desta vez), obedeci ao comando do doutor. Ele me observou, indagando se eu sofrera alguma lesão. Afirmei que não, mas o hematoma em meu ombro direito negou veementemente.

- E isto daí? – perguntou o médico, apontando para a marca.

Expliquei para ele como consegui aquilo. Mesmo não se tratando de uma lesão causada por agressão policial, ele aproximou-se de mim com uma fita métrica e mediu o diâmetro do hematoma, anotando em seguida num papel. Ordenou que eu me virasse. De costas para o médico, aguardei que ele avaliasse minha bela bunda e o resto de meu corpo. Depois ele ordenou que eu me virasse novamente. Neste momento, tive um pensamento mórbido. Imaginei o médico com um pandeiro, tocando um som enquanto eu sambava com o meu gingado paulista, rodando em tom dançante até voltar a ficar de frente para ele, no momento em que ele cantasse um “pedi pra parar, parou!”.

Encerrada a inspeção, vesti-me e saí da saleta do médico, voltando para o camburão, decidido novamente a cumprir meu juramento anterior, de guardar meu corpitxo para minha namorada.

Depois que todos foram examinados pelo médico, um policial disse que chamaria um por um pelo nome completo, o mesmo deveria depois repetir o nome completo e olhar para uma câmera, em seguida estaria livre, juridicamente falando.

Novamente, fui um dos últimos a ser solto para a liberdade. Senti-me um pássaro sendo solto de uma gaiola, pronto para bater asas e voar pelos céus. Foi lindo!


CAPÍTULO 10 – A MITIGAÇÃO DAS PENAS

Assim que saí, encontrei-me com três conhecidos meus, bons companheiros e amigos, que não deixaram nem o Chris nem a mim na mão, oferecendo apoio enquanto estávamos encarcerados. O grupo fez uma roda ali mesmo na frente do IML e cantou uma música por mim desconhecida, tirou foto para o jornal Correio Braziliense e também concedeu entrevista para a única emissora de televisão ali presente, a Record. Foi decepcionante, achei que eu ficaria com os olhos doendo de tantos flashes que seriam disparados quando eu saísse do cárcere. Mas eu ainda saí bem pequenininho no Correio Braziliense, lá ao fundo da foto.

Quando contei para minha mãe que eu fui preso, ela ficou uma fera, disse que eu estava fazendo coisa errada e aquele pensamento bem brasileiro mesmo, de que quem não comete crime não vai preso.

Enquanto estávamos presos, anotamos os e-mails na camiseta de um dos companheiros, que se comprometeu a mandar e-mail para todo mundo, para que não perdêssemos contato e que continuássemos conversando. Mantivemos contato por algum tempo. Embora eu ainda tenha o e-mail de todos, não temos conversado mais.

Um dos companheiros escreveu um excelente texto em um jornal da UnB, muito bacana mesmo (bem melhor do que esse texto aqui).

Seis meses e meio depois, posso dizer que nada aconteceu. Não fui intimado para nada, e creio que não serei intimado. Na ocorrência que eu retirei numa outra delegacia logo depois, um absurdo: a ocorrência citava os artigos dos “infratores”, como se todos tivessem cometido os mesmos crimes. Um ou dois dos presos foi flagrado portando maconha, mas a ocorrência tratava como se todos nós estivéssemos portando e usando substância entorpecente.

Não há provas contra nós. Apenas a palavra dos policiais. Existe um vídeo, que pode ser visto no Youtube¹, em que apareço caminhando lentamente, atravessando a rua, em meio a outros manifestantes. Fui preso sem fazer nada. Os outros manifestantes ao meu redor estavam interditando uma rua. A ação deles pode ser classificada como crime? Não sei, não entendo o suficiente de leis. O que eu entendo é que o crime não pode ser generalizado, o crime é individual e eu não posso ser punido pela ação de outras pessoas. Não existe nenhuma prova contra mim, assim como tenho certeza que não existe nada contra inúmeros outros manifestantes. Vi pessoas que foram presas estando apenas AJOELHADAS com um cartaz na mão, que inclusive dizia “mais amor por favor”.


Que cada um faça o seu julgamento sobre tudo o que aconteceu. Para mim, há vilões e mocinhos dos dois lados: do lado da polícia e do lado dos manifestantes. Mas o importante também, é que não se perca o foco, de quem realmente têm sido os grandes vilões desse país: uma classe política corrupta e pouco preocupada em acabar com as mazelas sociais deste país.


¹ Posso ser visto no vídeo atravessando a rua entre 3min51seg e 3min55seg.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Memórias do Cárcere - Parte IV

Penúltima parte da narrativa sobre minha aventura prisional.


CAPÍTULO 7 – O PANOPTISMO

Um recurso para o bom adestramento, que discutirei em separado, é o do panoptismo, ideia inaugurada pelo desocupado do filósofo Jeremy Bentham e posteriormente emprestada pelo invertido – no sentido freudiano – do Michel Foucault. Antes que isso se torne uma aula chata de filosofia, vou explicar o cerne da ideia do panoptismo: criar um ambiente cuja geografia transmita ao prisioneiro a sensação de que ele é/pode estar sendo observado ininterruptamente, sem que de fato seja necessário que as autoridades efetuem a observação o tempo todo.

A câmera disposta na frente da cela tinha esse intuito. A geografia da cela, confesso, não foi tão bem planejada para esse fim. Mas tudo bem, aquilo não era uma cadeia de verdade, então não podia se exigir muito. A vigilância era suficiente para nos controlar. Embora, ninguém ali pretendesse fugir. Não que pudéssemos fazê-lo, caso quiséssemos. Esse é um bom caso em que a premissa “querer é poder” não se aplica.

R, um dos autores desse blog, tinha uma teoria tão boa quanto a teoria de Bentham. Na casa onde cresci e vive até me mudar para Brasília, o banheiro era em formato de “L”, conforme imagem a seguir:

 Representação do banheiro da casa onde cresci. A parte mais clara esquematiza o meu provável campo de visão
quando estou tomando banho debaixo do chuveiro. A parte mais escura ilustra a minha eterna dúvida: haverá
alguém me espiando enquanto estou nu fazendo minhas abluções, com minhas vergonhas de fora?


Eu disse para R que, apesar da porta do banheiro estar fechada com chave, quando eu tomava banho, sempre temia que alguém entrasse no banheiro e ficasse espreitando, me espiando enquanto eu tomava o banho (sim, eu sou egocêntrico e acho que todo mundo quer me ver pelado). Para evitar tal sentimento, eu costumava tomar banho sempre voltado para o resto do banheiro, todo o tempo que eu podia, jamais para a parede do fundo do banheiro. É claro que eu não olhava sempre, pois me virava para pegar o sabonete, para lavar o corpo e também fechava os olhos para enxaguar o cabelo, cheio de espuma do shampoo. A grande teoria do R diz o seguinte: você nunca poderá ter certeza de que não tem ninguém te observando tomando banho, você só pode ter certeza de que não está sendo observado nos momentos em que você está observando se alguém o observa ou não. Acho que essa teoria é tão boa quanto a anterior – de Bentham – para ilustrar minha ideia sobre a observação policial no cárcere.

Aproximadamente trinta minutos depois (ou pode ter sido várias horas depois, pois perdi a noção de tempo no cárcere) fomos visitados por policiais, que nos assujeitaram, mandando que pegássemos nossos pertences e seguíssemos em fila indiana o caminho que eles nos indicavam. Eu já estava feliz, achando que minha reclusão estava para terminar precocemente, bem mais rápido do que eu esperava. Mas eu me enganara. Eles estavam apenas nos mudando de cela. Depois eu soube que era porque uma fêmea fora presa, a primeira até ali, e devido à falta de celas disponíveis, teriam que mudar nosso grupo de lugar, para que nossa antiga cela servisse de cela vip para a garota. Nada contra isso. Mas é curioso. Regras são regras. Podem tirar nossa roupa, nossa dignidade e nos subjugar à vontade. Mas botar uma garota na mesma cela que vários rapazes vai contra as regras, pois poderíamos estuprá-la. Aliás, bem provável que isso acontecesse, afinal, éramos quatro bandidos perigosíssimos e incontroláveis, transbordando testosterona e loucos para saciar nosso enorme apetite sexual; e não um grupo de quatro pessoas com argumentos razoáveis num protesto pacífico, que estariam presos com uma garota, que fazia parte do mesmo protesto e, portanto, era uma companheira, ainda que desconhecida, ligada a nós por uma mesma causa – e pela mesma injustiça.

Em nosso novo lar, já havia, para surpresa minha, entre quinze a vinte pessoas (não me recordo o número exato). A primeira impressão foi pesada – e ao mesmo tempo engraçada –, a de ver tanta gente numa mesma cela. Não sabia se eram presos políticos como nós quatro, ou se eram de outras ocorrências alheias a da manifestação. Logo depois, eu soube que estávamos todos no mesmo barco furado. O único negro da cela, ao ver Chris, exclamou, em tom jocoso:

- Até que enfim chegou outro negro aqui!

Todos riram de sua frase, mostrando o ar descontraído da cela. Ali todo mundo já estava amigo, contando sua trajetória daquele dia, os acontecimentos que culminaram em suas respectivas prisões. O anteriormente único negro citado, contou que foi atropelado por policiais para ser preso. Fiquei surpreso, o que teria feito aquele sujeito, para ser tratado pior do que animal? Devo ressaltar que reparei que ele tinha apenas uma mão. Eu soube posteriormente, há apenas alguns dias atrás, através de texto escrito por esse cara em jornal da UnB, que ele nascera daquele modo, e sofrera humilhações absurdas por parte de policiais por conta de sua raça e de sua deficiência. Parece que, depois dos policiais (que já estavam com sangue nos olhos desde o início da manifestação, visando ele, provavelmente por conta de sua cor) o capturaram, atropelando-o e algemando-o, em dado momento suas calças começaram a cair e ele pediu para que um dos policiais as erguesse por ele. Em tom zombeteiro, o policial teria respondido para ele próprio levantar, numa dupla afronta: primeiro pelo fato dele estar algemado, segundo por zombar da deficiência dele (posso ter subvertido um pouco da história original de meu companheiro de prisão, peço desculpas se o fiz, o objetivo não foi esse).

Imagem que mostra um dos vários atropelamentos acidentais sem querer querendo de propósito, ocorridos no dia da
manifestação. Este vídeo foi exibido ao vivo dentro do programa global Caldeirão do Huck, na Central da Copa. Num
desses atropelamentos, a vítima foi um de meus colegas de cárcere, que foi convertido como acusado.


Mesmo muitos de nós tendo passado por abusos e excessos policiais, todos estávamos tranquilos na cela, pois tínhamos a consciência tranquila e a certeza de que havia muitas imagens favorecendo os manifestantes. O pessoal continuava narrando suas aventuras, de modo bem humorado. Quando o grupo começava a rir ou a falar um pouco mais alto, aparecia um policial e nos dava bronca:

- Cala a boca, porra! Tão pensando que isso aqui é feira ou o quê?!

O tédio era tão grande na cela que, como observamos posteriormente, todos já havíamos trocado de lugar na cela umas três vezes, em relação ao lugar original que cada um ocupava no início. Aqui eu preciso abrir um parêntesis e contar algo bem engraçado que aconteceu na cela. Foi quando um advogado da OAB foi até a cela e emprestou seu celular para todos que quisessem fazer uma ligação. Eu não consegui entrar em contato com ninguém, mas isso não importa agora. O Chris, ao contrário de mim, conseguiu fazer sua ligação. Todo mundo conversava animadamente, enquanto as pessoas faziam suas ligações. Mas no exato instante que a ligação de Chris foi completada e ele falou, coincidiu um silêncio na cela.

- Oi amor. – disse Chris.

Essas palavras foram suficientes para todos exclamarem um “huuum” zombeteiro, tirando um sarro da cupidice de meu amigo.


CAPÍTULO 8 – A PUNIÇÃO GENERALIZADA

Recebemos algumas visitas durante nossa prisão. Dois advogados se ofereceram para assessorar os membros do movimento que foram presos, um deles, o advogado citado anteriormente quando da nossa chegada à delegacia.

Outra visita que recebemos foi da Deputada Distrital e psicóloga Érika Kokay, que inclusive entrou na cela e tocou meu ombro (o são, não o ferido). Eu nunca mais lavei o ombro desde então. Brincadeiras à parte, pouco conheço da trajetória política de Kokay, sei apenas de sua luta LGBT e em favor dos Direitos Humanos, sendo esta última a razão dela estar ali. Ou poderia ainda ser lobby político, já que ano que vem é ano de eleições. É difícil concluir quais eram as motivações dela estar ali. O discurso foi bonito. Suas intenções permanecem uma incógnita para mim. A conclusão foi que ela convidou para que todos comparecerem ao gabinete dela no Congresso, pois ela gostaria que fizéssemos nossos depoimentos na Comissão de Direitos Humanos (aquela bem polêmica, presidida pelo Deputado Marco Feliciano).

A Deputada Distrital Erika Kokay, que nos visitou no xadrez.


Os ânimos na delegacia estavam alterados, pois a mídia cobria o ocorrido, ou seja, o trabalho deles era de certa forma fiscalizado pela imprensa. Kokay só conseguiu entrar ali por conta de seu prestígio e de sua posição política. Algo inusitado aconteceu quando ela entrou na cela. Nós estávamos tossindo, pois o cheiro de spray de pimenta se fez muito forte dentro da cela. Há quem cogite a hipótese de algum policial ter ido pelo lado de fora da delegacia e espirrado spray de pimenta através da janela da cela, apenas para nos torturar naquele já apertado espaço. Não posso afirmar isso, mas o fato é que todos começaram a sentir irritação na garganta e a tossir simultaneamente. E para sorte nossa, Kokay chegou logo após o cheiro ficar mais forte, e também tossiu e sentiu um pouquinho do “tempero” apimentado da polícia.

Após a saída de Kokay, fomos visitados por policiais militares de diversas unidades, em especial do Choque, que iam até a grade da cela acompanhados de um policial civil, aí apontavam uma lanterna pra nossa cara e o policial do Choque apontava o dedo para um de nós. Alguns acham que ele estava escolhendo qual era o mais bonitinho, outros qual ele gostaria de adotar. Eu ainda acho que os policiais do Choque, após uma violenta ação policial, estavam tentando inverter a mesa e acusar alguns de nós de os agredirem! Que absurdo! Como é que um civil desarmado agride um policial do Choque que está com armas com bala de borracha, escudos e cassetetes, e ainda por cima junto de um pelotão igualmente armado e articulado entre si?

Alguns de nós, os lesionados (exceto eu, pois minha lesão não era ocasionada por agressão, e sim por burrice minha), foram retirados da cela para atendimento médico, entre eles o cara anteriormente citado, atropelado pelos policiais.

O primeiro policial civil que nos abordara chegou à cela um bom tempo após a saída de Kokay, dizendo que assinaríamos um papel em duas vias e depois seríamos dispensados. Disse que não era para lermos o documento, pois ele não tinha a noite toda – porra!

Ele chamou nome por nome para que assinasse os papeis. Um dos detentos rabiscou uma assinatura, gerando um enorme transtorno para si mesmo.

- O que você fez aí? Essa é a sua assinatura? – disse o civil.

- É. – respondeu o detento, com ar assustado.

- Tá assim no seu RG?

- Mais ou menos...

- Tá de brincadeira com a minha cara, porra! Cê acha que eu to brincando aqui? Agora você vai fazer igualzinha a outra assinatura, senão você não sai dessa cela aqui essa noite! Porra!
Aparentando medo, o cara copiou a primeira assinatura que inventara e, por um milagre, conseguiu reproduzi-la.

Uma das orientações do manual do bom manifestante é: ser for preso, jamais assine nada sem ler. Praticamente ninguém leu o documento, na euforia de sair logo dali e também pela ameaça do policial civil. Alguns, como eu, passaram rapidamente os olhos pelo documento, fazendo uma leitura dinâmica de seu conteúdo. Mas o fato é que todos estavam ansiosos para terem de volta algo que lhes custava muito e que só foram perceber assim que a perderam: suas liberdades.


Continua...

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Memórias do Cárcere - Parte III

Continuação de minha narrativa. Se você não leu a primeira e a segunda parte, clique aqui e aqui, mas não aqui.


CAPÍTULO 5 – O CARCERÁRIO

Em primeiro lugar, preciso dizer que eu fiquei numa cela. Mas eu não estava numa cadeia. Aquela cela serve apenas para manter autores em flagrante delito até os burocratas do sistema (delegado e juízes) decidirem o que fazer com os mesmos: encaminhar para a Papuda (prisão local), conceder liberdade, atiçar fogo e jogar as cinzas no lago Paranoá ou alguma outra decisão mirabolante da [in]Justiça.

O policial civil que conduziu a nós quatro para nosso novo lar não parecia muito simpático. Até hoje eu conjecturo o motivo dele estar tão puto. Estaria ele com raiva da gente? Era tão estranho aquilo. Até cinco minutos atrás, ele sequer nos conhecia, nunca nos vira antes (agora os policiais que participam da história não são os mesmos de antes, em sua maioria, são civis). Nem sabia exatamente por que estávamos sendo presos. Não desrespeitamos ele em nenhum momento. Então, o que era tudo aquilo? Era fingimento? Será que fazia parte da necessidade de seu trabalho que ele se imbuísse de uma expressão iracunda para transmitir maior seriedade ao exercício de suas funções? Conforme postula Erving Goffman, seria essa uma “representação do eu” daquele civil? Compreendo perfeitamente que cada um de nós, conforme afirma Goffman, atua conforme o ambiente em que está inserido, o cenário que está e os atores que interagem conosco. Mas mudanças tão drásticas e contraditórias de comportamento para mim são difíceis de imaginar. Não consigo pensar naquele civil num culto religioso, ou em seu lar, brincando com a filhinha de três aninhos, todo doce, e depois ir cheio de ternura para perto da esposa. Para mim é indissociável aquela postura do civil com sua personalidade (ainda que eu possa estar errado).

Antes de chegar à cela, perguntei-me se eu apanharia dos policiais, se sofreria alguma espécie de agressão ou tortura psicológica. Não estou pensando em nada exagerado, como em guerras, mas apenas umas porradas, socos e pontapés. Não lembro exatamente o que aconteceu, mas primeiramente só chegamos à cela Chris e eu, os outros dois caras ficaram para trás, acho que eles queriam nos mandar para a cela aos pares, estilo casais. Defronte a cela havia uma câmera. No entanto, o policial civil pediu (leia-se ordenou) que nos dirigíssemos ao ponto cego da câmera, isto é, ao único lugar onde a câmera não conseguia filmar. Óbvio que ele não disse que era o ponto cego, mas era só olhar a posição da câmera e o local onde ele nos mandou ir, e fazer as deduções lógicas.

Esquematização do lugar onde ficamos no início de nossa prisão. Existe apenas
uma coluna que separa o banheiro do resto da cela, sem qualquer privacidade ou
dignidade para o detento. E a câmera não inibe abusos policiais.


Prosseguindo, o civil ordenou que Chris e eu fôssemos até aquele cantinho e tirássemos nossa roupa. Ah, então chegara o momento da nudez. O tão temido momento da nudez! Eu, que antes dos dezoito anos, achava que o momento da nudez viria junto com a maioridade, no alistamento militar, quando iria para o tiro de guerra e tomaria banho com mais trinta homens pelados. E que logo após fazer dezoito anos e superar o mito da nudez do alistamento militar, passei a considerar que a exposição de minha nudez se daria através do coito, de exame de próstata e de autópsia – não necessariamente nessa ordem e não necessariamente cumulativos. Foi com a mesma esperança que eu tenho de um dia ganhar na loteria sem jamais jogar, que eu fiz a pergunta a seguir ao civil, esperando receber um “não” como resposta: toda a roupa, senhor?

- Toda a roupa, porra!

Não bastasse a prisão, eu fui preso com um negro. Como ficar nu junto com um negro e não se sentir inferiorizado? Como não se sentir uma criança comparado aos dotes do coleguinha ao lado? Naquele momento, aprendi uma técnica de como ficar nu sem se envergonhar. Já dizia Chespirito, através de sua personagem Chiquinha: o que os olhos não veem o coração não sente.

Sendo assim, basta tirar a roupa sem olhar para seu próprio corpo. Não tome consciência de sua ridícula nudez, e tudo sairá bem. Ah, e também não tome consciência da nudez da outra pessoa, principalmente se ela for negra. A menos que seja no coito, aí eu recomendo que você o faça, pois a visão é um importante sentido durante a cópula. Mesmo sem olhar, pude notar que eu me despi rapidamente, terminando primeiro que o Chris. Ele estava com vergonha de mostrar algo. É claro que eu não vou dizer aqui do que se trata (óbvio que não é o genital), para não constrangê-lo, caso a identidade dele seja eventualmente conhecida por algum leitor deste blog. Nós fizemos um juramento, de que algumas coisas que aconteceram entre aquelas três paredes, atrás das grades, manteríamos em segredo e levaríamos conosco ao túmulo.

Até hoje o Chris me relata que suou em bicas enquanto tirava a roupa, tudo porque vira com o rabo do olho que o policial civil vestia uma luva médica nas mãos naquele momento. Sabe o que eu pensei naquele momento, Kily?, relatou-me Chris. Eu pensei assim: “será que eles fazem exame retal gratuito aqui no corró?”.

É incrível como a nossa mente tem a capacidade de nos pregar peças. Digo isso, pois tenho certeza absoluta de que Chris nesse momento alucinou, e logo depois, fui eu quem teve uma alucinação, sendo a dele visual e a minha auditiva. Em momento oportuno, conto como foi. Com Chris e eu nus em pelo, o civil ordenou que fizéssemos três agachamentos, ao que ele contou: UM! DOIS! TRÊS!

Satisfeito com o fato de nenhum artefato bélico ter sido expelido por nossos respectivos ânus, ele ordenou que colocássemos novamente a cueca (eu, além de cueca, humilhantemente usava também samba-canção). Fui vestindo minha roupa, pensando em minha amada namorada, para quem eu guardava a sete chaves a minha casta nudez, expondo-a totalmente apenas no recôndito de meu banheiro. E de repente, todo aquele voto de pureza jogado por água abaixo, tudo por culpa d’O Estado¹. Em seguida, mandou pegarmos nossas calças e tirarmos o cinto. Ele perguntou para Chris se ele estava com carteira, ao que ele respondeu que estava. Ele mandou Chris tirar o dinheiro da carteira, e ele obedeceu.

- Agora come!

Eu gelei. E se aquele desgraçado pedisse pra eu comer o meu dinheiro também? Eu estava com uma quantia considerável na algibeira, e não estava com fome a ponto de querer comer meu dinheiro. Preferia usá-lo para comprar algo mais apetitoso, quem sabe um pastel na Viçosa. Percebi que Chris não comeu o dinheiro e que ele informou quanto tinha, guardando-o na carteira a seguir. Posteriormente, Chris me contou que o civil dissera “conta”. Por algum motivo macabro, eu alucinei “come”.

Depois de ordenar que colocássemos nossas calças (porra!), entramos sem camisa e descalços em nosso novo lar, fedendo a urina (o lar fedia a urina, e não nós dois).

Nossos coleguinhas vieram em seguida, tendo sua humilhação dobrada, pois ficaram nus diante de nós. De minha parte, em respeito ao assujeitamento deles, olhei para o nada, evitando vê-los nus. Naquele momento, Chris e eu estávamos na cela, mas ainda de pé, com as mãos para trás, minhas calças caindo devido ao meu corpanzil raquítico e a ausência de cinto. Logo depois que os amiguinhos pelados entraram na cela (realmente, não consegui detectar o procedimento padrão para presidiários, pois eles permaneceram pelados, sem o mesmo direito que a nós foi dado, de vestir pelo menos as calças), o civil resolveu perguntar se todo mundo era di maior. Eu, Bin Laden – apelido carinhoso que o civil me deu durante meu período de reclusão, e que pegou até o final –, afirmei que sim, Chris também. Já os dois companheiros, bem mais altos que eu – o que não é lá grande coisa, sequer é motivo de orgulho, já que sou nanico –, afirmaram serem di menor. O outro policial, que agora acompanhava nosso policial-camareiro, soltou um “porra” (o vocábulo, e não o fluído corporal), que assim como todos os outros que eles falavam, não tinha qualquer função sintática na frase, denotando apenas uma fragilidade verbal dos membros da corporação.

Menores não podem ficar presos junto com maiores de idade. É essa a regra. Eles eram maiores do que eu, na altura, mas quem sou eu pra mudar o regulamento? Nem os policiais têm esse poder. Então a opção foi dar continuidade ao jogo segundo as regras pré-estabelecidas. Continuemos com a farsa!



CAPÍTULO 6 – OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO

Alguns minutos depois, um policial civil munido de câmera fotográfica foi até nossa cela registrar aquele momento. Foi tão lindo! Achei doce aquele gesto dele, imortalizando aquela confraternização na delegacia, deixando Chris e eu fazermos poses, tirando foto de frente, de perfil e num ângulo de 45 graus (ou de 135 graus, dependendo do seu ponto de vista).

Chris e eu sentamos no chão da sala, cheirando a fezes. Então percebi que Chris estava com os olhos brilhando, a olhar na direção de meus pés. Foi quando senti meu rosto ruborizar: pela primeira vez em muito tempo, alguém via meus pés nus. A parte mais sagrada de meu corpo, o meu mais poderoso órgão sexual estava ali, despido de qualquer meia, polainas ou outro calçado que pudesse escondê-lo da cobiça alheia. E justo para um podofílico (podo, do latim PODUS, que significa pés, não tem nada a ver com pedofílico).²

- Finalmente eu vi seus pés. – disse Chris, em tom zombeteiro.

Sem graça, eu dei alguma resposta ininteligível. Tentei lembrar-me da última vez que alguém vira meus pés. Provavelmente, fora a seis meses atrás, quando eu estava em minha casa, em minha cidade natal. Obviamente, as pessoas que viram minhas vergonhas foram meus pais e minha irmã, as únicas pessoas que tinham esse direito, pois sabia eu serem as únicas que não me atacariam ao vê-los. Nem minha namorada via meus pés – eu não permitia tal disparate –, senão tenho certeza que ela me faria de gato e sapato (sem sapato), me usando como seu objeto sexual. Eu bem sei as armas que eu tenho escondido dentro de minhas meias, por isso as guardo e uso com sabedoria.

Entendi, naquele momento, que este era um dos principais recursos para o bom adestramento na prisão. Um dos objetivos da prisão é o de tirar toda individualidade do preso, sua dignidade e sua personalidade. Meu cognome, Bin Laden, já era uma dica de que o objetivo dos policiais era o de me humilhar. Alguns minutos depois, enquanto Chris e eu continuávamos sentados no chão da cela, mais dois vagabundos foram levados para o mesmo cantinho nosso. Era a vez de sua humilhação particular. Particular, e nada íntima. Chris e eu pelo menos tivemos a sorte de não sermos observados por nenhum outro recluso, quando tirávamos nossas roupas. Não posso responder pelo Chris, mas de minha parte, procurei não manter contato visual com o lugar onde os novos companheiros estavam (o ponto cego da câmera). O que relato a seguir foi apenas auditivo, embora eu possa imaginar a cena que se passava, já que eu passara pela mesma coisa minutos antes. Os dois rapazes foram conduzidos ao cantinho do nudismo, onde o mesmo policial civil com quem eu antipatizei mandou que eles tirassem a roupa. Um dos caras tentou ser educado com o policial e questionar – educadamente – se aquilo realmente era necessário. Só que uma coisa é importante que seja dita sobre policiais: eles não querem educação; eles querem submissão.

Devido à insistência do recente preso em questionar a retirada de sua indumentária, o civil decidiu humilhá-lo mais um pouco, fazendo alusão à pequenez de seus órgãos genitais:

- Que que foi, tá com vergonha de mostrar o pinto? Você tem o pinto pequeno? Tira logo essa porra dessa roupa que agora eu quero ver o tamanho desse pinto!

Assim que ambos tiraram a roupa, o policial disse que realmente os ditos-cujos deles eram pequenos. Eu não vi os respectivos pênis, mas mesmo assim tenho que defendê-los: tenho certeza que mesmo que eles tivessem uma tromba de elefante entre as pernas, o civil ainda assim diria que tinham genitálias pequenas. A ideia aqui é muito simples, explorar um mito cultural grandemente difundido e com grande valor para o ego masculino, submetendo-os a mais uma de inúmeras outras formas de humilhação.

Outro recurso para o bom adestramento é a privação de qualquer contato com o mundo externo. Exceto, é claro, que estávamos numa delegacia que ficava ao lado do Estádio. Então, enquanto o Neymar estava sendo exibido para um bilhão de pessoas, fazendo gols e se consagrando ainda mais, eu estava ali, bem perto dele, preso, escondido do mundo, que até hoje não sabe quem eu sou, mesmo eu sendo muito mais inteligente que o futebolista. A janela da cela não me permitia ver nada, além de um ínfimo pedaço do céu. Como eu nunca fui escoteiro, não conseguia determinar o horário. Tirar a noção do tempo é um importante recurso para adestrar o sujeito. Sabe quando o ano está acabando e você diz assim: “nossa, mas como passou rápido, parece que foi esses dias mesmo que o ano estava começando!”? Então, na prisão é exatamente assim, só que ao contrário. Quando você acha que está preso há um ano, descobre que deu entrada na delegacia há dez minutos. Agora eu entendo por que os presidiários dos cinemas fazem pauzinhos na parede da cela. É uma tentativa de não enlouquecer e manter o controle sobre algo em suas vidas, no caso, sobre o tempo.

Depois de algum tempo (que não sei quanto tempo foi porque perdi a noção do tempo), quando os dois novos encarcerados estavam na mesma cela que Chris e eu, começamos a conversar sobre ideologia política, anarquismo e essas bobagens que poderia ser discutida numa lanchonete, dentro de um ônibus ou numa cela de delegacia. Quando um policial passou pela cela, um dos novatos (não sei o Chris, mas eu já me sentia o veterano do xadrez) perguntou para ele se poderia ler dentro da cela. Já que não estava fazendo nada, ele gostaria de ler para passar o tempo.

Não tem nenhum mal no cara ler na cela. Só tem um problema nisso. Os policiais não querem que o preso sinta-se confortável ali. Se o tédio é um modo de impor sofrimento no vagabundo, então entediado lhe deixaremos. Esse é um dos lemas da prisão.

O militarismo costuma ser marcado por sua disciplina, tanto no que diz respeito à postura física, imponência, conduta ilibada, quanto o respeito à hierarquia, ao comando superior. E esta característica do militarismo é de alguma forma passada para os presos. A questão do machismo, da virilidade, do falar grosso, “que nem homem”, também são questões próprias deste adestramento. Foi ali naquela cela que eu percebi que o que acontece na escola, o que vivenciei por pelo menos onze anos de minha vida em sala de aula, é apenas uma forma minimizada de tratamento disciplinar, se comparado ao que acontece ali na cela. O palavrão, usando o substantivo “porra” como interjeição, o uso de verbos no imperativo, fazem parte desse adestramento, que visa tirar não só a liberdade espacial e temporal, de determinar por quanto tempo eu tenho delimitada a geografia de onde posso transitar, mas visa também tirar a liberdade individual, de escolher, de decidir sobre mim mesmo, tentando mostrar que minha única opção é a submissão. Na escola, aprendi o a-bê-cê-dê. E ali na prisão, tentaram me ensinar o ô-bê-dê-cê.


¹ Posteriormente, um amigo meu também foi preso em manifestação, e fiquei pasmo quando vi que em seu boletim de ocorrência, no campo “vítima”, constava a seguinte expressão: O Estado.

² Esta terceira parte da narrativa está extremamente didática.


Continua...