segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O Chaveiro

Este texto segue um estilo teatral, nonsense. Para ler outro texto teatral nonsense já publicado neste blog (este outro pelo R), clique aqui. Meus agradecimentos a Srta. Rocha pela inestimável ajuda e comentários tecidos na fase de elaboração deste texto. Para conferir os trabalhos de minha amiga, acesse o blog dela clicando aqui.

Cena Única

Local da cena: Loja do Chaveiro. Um pequeno ponto comercial, composto de um balcão de vidro, onde estão expostos vários modelos de chaves e de fechaduras. Do lado de dentro do balcão, está o chaveiro, confeccionando a cópia de uma chave. Na parede ao fundo, dois papeis A4 estão pregados na parede. Num deles consta a tabela de preços dos serviços prestados pelo chaveiro e noutro, em letras maiúsculas, ocupando boa parte da página, alinhado à esquerda, constam os dizeres: “NÃO FASSO FIADO”. Uma porta dá para o fundo da loja, inacessível ao público. Do lado de fora do balcão está um cliente, de pé em frente ao balcão, aguardando a conclusão da cópia pelo chaveiro.

CHAVEIRO – Já estou terminando sua cópia, amigo. É dois segundos.
CLIENTE 1 – Espero que dessa vez dê certo. Já é a terceira vez que tenho que retornar aqui na sua loja porque uma chave que o senhor me copia não entra na fechadura da porta de casa.
CHAVEIRO – Eu sinto muito pelo transtorno. Dessa vez vai funcionar, amigão.
CLIENTE 1 – É o que vamos ver.
(Entra outro cliente na loja)
CHAVEIRO – Boa tarde, amigão.
CLIENTE 2 – Boa tarde. Você tem algum DVD do Chaves?
CHAVEIRO – Tenho sim. Tenho os volumes 1, 2 e 3. Sai 5 dilmas cada.
CLIENTE 2 – E se levar os três tem algum desconto?
CHAVEIRO – (Pára o trabalho e olha para o Cliente 2) Olha, se o senhor levar os três eu faço um preço bom pro senhor. De vinte dilmas deixo pra quinze pro senhor, no pagamento à vista.
CLIENTE 2 – Então fechou. Eu vou levar.
CHAVEIRO – (Abandona seu trabalho de cópia da chave e pega os três DVDs numa gaveta, coloca numa sacola e entrega pro cliente. O Cliente 1 observa a cena incrédulo, por ter sido passado pra trás no atendimento) Tá aqui, amigão!
CLIENTE 2 – Beleza. (Entrega uma nota de vinte reais para o chaveiro)
CHAVEIRO – O senhor não tem trocado, não?
CLIENTE 2 – (Apalpa o bolso da camisa social e em seguida a enfia no bolso, à procura de dinheiro) Vixi, o pior é que eu não tenho. Tá ruim de troco?
CHAVEIRO – Então, eu até tenho troco, mas tá na minha gaveta e ela tá trancada e eu perdi a chave.
CLIENTE 2 – Caramba, que merda, hein? Pô, eu conheço um chaveiro muito bom, o cara é ponta firme, vou te deixar um cartãozinho aqui. (Tira um cartão do bolso e coloca em cima do balcão)
CHAVEIRO – Valeu, amigão.
CLIENTE 1 – Deixe um cartão pra mim também.
CLIENTE 2 – Toma. (Entrega um cartão para o Cliente 1) Bom, e como fazemos? O que você tem aí de 5 reais? Mais algum DVD do Chavinho?
CHAVEIRO – Tenho não, amigo. O volume 4 tá em falta, a procura tá sendo grande e eu não tive tempo de fazer mais cópias dele ainda. Mas eu tenho aqui um DVD da Kelly Key, com uma coletânea de canções dela mais o ensaio dela na Revista Playboy.
CLIENTE 2 – Opa, pode ser. Me passe ela aqui. (Pega o DVD passado pelo chaveiro) Agora só não errar o presente de aniversário do filhão, né gente? (diz rindo, dando uma cotovelada no Cliente 1, este contrariado pela demora) Até mais pessoal! (Sai da loja)
CHAVEIRO – Até! (olhando para o Cliente 1) O seu o que que era mesmo?
CLIENTE 1 – (Gritando) A chave bendita!
CHAVEIRO – Ah, sim. Sim. Aqui está, prontinha. A cópia e a original que o senhor me trouxe de modelo. (Entrega as duas para o Cliente 1) São dez paus.
CLIENTE 1 – (Gritando) Dez paus por uma chave que eu já paguei e não funcionou?
CHAVEIRO – Olha, calma, amigão. Eu tive meus gastos, essa é a terceira chave que eu gasto para resolver seu problema. O senhor precisa entender o meu lado também.
CLIENTE 1 – Tudo bem, já chega dessa ladainha. Mas é bom que funcione dessa vez. (Tira um baralho do bolso e começa a folhear as cartas) Hum, mas que droga. Está faltando o dez de paus desse baralho, acho que tirei ele quando fui jogar truco.
CHAVEIRO – Não tem problema, faz por sete pro senhor, pra melhorar pro seu lado e pra ficar bom pra nós dois, amigão.
CLIENTE 1 – (Falando baixo, consigo mesmo) Sete de paus, sete de paus? Ah, achei! Aqui está, sete de paus. Certinho?
CHAVEIRO – Certinho. Muito obrigado senhor. Volte sempre!
CLIENTE 1 – (à parte, para a plateia) Espero nunca mais ter que voltar.
CHAVEIRO – (à parte, também para a plateia) Eu sei que ele voltará.
(O Cliente 1 sai da loja, ao mesmo tempo em que entra um garoto de 12 anos)
GAROTO – (arfando de cansaço) Oi, seu chaveiro.
CHAVEIRO – Moleque! Por que demorou tanto, assim? Que horário de almoço é esse que demora mais de 2 horas pra voltar?
GAROTO – Desculpa seu chaveiro, mas é que eu tava lá no...
CHAVEIRO – (interrompe a fala do garoto) Não quero nem mais, nem menos. Preciso que você corra pra mim fazer uma entrega lá na Banca do Tião, daqui a três quadras. Eu já teria ido lá, mas é que não posso deixar a loja sozinha.
GAROTO – O que é pra levar lá?
CHAVEIRO – Esse CD aqui. (entrega para o garoto uma capinha protetora contendo o objeto indicado) Diga para ele que no CD já tem o crack do Brasfoot e a chave de registro do jogo.
GAROTO – Sim senhor, seu chaveiro. E quanto ele tem que pagar?
CHAVEIRO – São cinco contos, como nós combinamos. Ele já tá sabendo do preço. Mas avise pro Tião não bancar o engraçadinho pra cima de mim: nada de contos dos Irmãos Grimm. Quero contos que engrandeçam nossa cultura regional.
GAROTO – Sim senhor. Vou lá. (sai correndo)
CHAVEIRO – Vá, meu filho. (para si próprio, esfregando as mãos) Eis aí a minha próxima cliente.
(Entra uma mulher, de aproximadamente 40 anos)
CLIENTE 3 – Boa tarde, Chaveiro.
CHAVEIRO – Boa tarde. (em tom galanteador, com uma certa mesura) Em que posso servi-la?
CLIENTE 3 – Chaveiro, aqui você também troca segredo?
CHAVEIRO – Claro que sim! (coloca os cotovelos sobre o balcão, apoiando o queixo nas mãos, começa a falar mais baixo, em tom de fofoca) Vai, me conta: qual é o seu segredo?
CLIENTE 3 – (Também diminui o tom de voz) Eu fico até constrangida de falar, mas é que a sua mulher está dormindo com o açougueiro.
CHAVEIRO – (de súbito, assume trejeitos homossexuais) Mentira? Como você sabe disso?
CLIENTE 3 – Porque o açougueiro é meu marido, e eu flagrei os dois em pleno ato.
CHAVEIRO – E quando foi isso?
CLIENTE 3 – Ontem à noite, enquanto eu dormia. Em meu sonho.
CHAVEIRO – Impossível! Ontem à noite eu algemei minha esposa junto a cabeceira da nossa cama, totalmente despida, e joguei a chave fora. Pelo menos, foi assim que sucedeu em meu sonho! Não seria possível para ela estar em dois lugares ao mesmo tempo, seria?
CLIENTE 3 – Oh, Chaveiro, então qual é a chave deste mistério?
CHAVEIRO – Sinto muito, minha senhora. Mas desvendar o segredo da chave de mistérios é um serviço que há algum tempo já deixei de prestar, pois é muito difícil e dá pouco retorno.
CLIENTE 3 – (levando a mão direita à testa, em tom de tragédia) Oh, é uma pena. (e após uma pausa) E qual é o segredo que irá trocar pelo meu, Chaveiro?
CHAVEIRO – Ah, já ia me esquecendo, minha caríssima. (e diminuindo o tom de voz, acrescenta) Mas devo adverti-la que este é um segredo mui valioso, portanto deve permanecer guardado a sete chaves.
CLIENTE 3 – Literalmente?
CHAVEIRO – (arregala os olhos para a Cliente 3) Que pergunta tola, minha senhora. Bem sabes a resposta!
CLIENTE 3 – Perdão, Chaveiro. Rogo-te pelo seu perdão por tamanho disparate!
CHAVEIRO – (à parte, para a plateia) Que dramalhão! (e para a Cliente 3, em tom de voz mais baixo) O meu segredo não deve ser confiado a ninguém. E ei-lo entregue para ti: debaixo destas roupas, minha última peça consiste num ínfimo fio dental.
CLIENTE 3 – Oh, que repugnante visão! Por que estás usando apenas fio dental?
CHAVEIRO – É que o creme dental acabou e esqueci de comprar outro. Mas hoje mesmo passarei no mercado, para voltar a escovar meus dentes.
CLIENTE 3 – Ah, mas assim é melhor. (e após uma pausa) E me diga uma coisa: quanto foi essa troca de segredos, Chaveiro?
CHAVEIRO – Hum, deixe-me ver... O seu segredo foi bem revelador. Em contrapartida, eu o troquei por um a altura. Portanto, são cinquentinha.
CLIENTE 3 – Cinquentinha eu não tenho. Mas posso te pagar com uma 51? (diz isso, ao mesmo tempo em que retira da bolsa uma garrafa de Pirassununga)
CHAVEIRO – Aceito!
CLIENTE 3 – Mas antes de consumar o pagamento, eu solicito um conselho seu, Chaveiro.
CHAVEIRO – Será um prazer. Sobre o que se trata?
CLIENTE 3 – É que já faz exatamente uma semana que não consigo esvaziar o conteúdo dos meus intestinos. E eu queria saber se o senhor tem a chave para solucionar esse problema.
CHAVEIRO – Ah, mas isso é muito simples. (abre uma gaveta e de lá retira um poderoso laxante) Aqui está: esse remedinho é a chave que irá destrancar seus esfíncteres e que abrirá as portas do seu alívio. Recomendo que tome uma colherzinha desse produto, e que depois disso, passe no meu primo Relojoeiro, que ele tem uma solução para intestinos preguiçosos que não funcionam na hora certa. Ele diz que é tiro e queda: pegue esse produto com ele, e seu intestino continuará funcionando como um reloginho.
CLIENTE 3 – (sorrindo) Me ajudou muito, Chaveiro. Até mais.
CHAVEIRO – Foi um prazer ajudá-la, minha cara. (A Cliente 3 deixa a loja) Mais uma cliente satisfeita! E vem a próxima.
(Uma moça de aproximadamente 25 anos, muito bonita, entra na loja)
CHAVEIRO – Boa tarde, moça. Em que posso ajudá-la?
CLIENTE 4 – Boa tarde, Chaveiro. Estou profundamente apaixonada. Estou desesperada! Preciso de sua ajuda!
CHAVEIRO – Acalme-se, meu bem. Conte seu problema para mim.
CLIENTE 4 – Oh Chaveiro, me apaixonei por um homem mais velho, mas ele não dá a mínima para mim. Quero que me ajude a encontrar a chave para o coração deste homem.
CHAVEIRO – E quem é este homem? Me fale mais sobre ele, para que eu possa ajudá-la.
CLIENTE 4 –Quão tolo, és, Chaveiro! Este homem és tu!
CHAVEIRO – Eu?
CLIENTE 4 – Sim. Tu, Chaveiro. E como faço para ter acesso ao interior de seu coração?
CHAVEIRO – Antes, diga-me, menina: o que faz da vida?
CLIENTE 4 – Sou estudante de Serviço Social.
CHAVEIRO – Perdeste seu tempo então.
CLIENTE 4 – Como disse?
CHAVEIRO – Digo que, se acesso ao interior de meu coração é o que queres, está no caminho errado. Não o conseguirá através do Serviço Social. Precisas cursar Medicina, fazer especialização em cardiologia, e só assim terás acesso ao interior de meu coração.
CLIENTE 4 – Não há outro modo, meu senhor?
CHAVEIRO – Absolutamente! A menos, é claro, que escolhas o caminho mais fácil.
CLIENTE 4 – E qual seria este?
CHAVEIRO – Bem, há o açougueiro. E, como deves saber, ele possui facas, instrumentos perfurocortantes, verdadeiramente afiados. Podem auxiliar-te a acessar o interior de meu coração.
CLIENTE 4 – Tens razão, Chaveiro. A primeira opção me parece a certa, porém, está tão distante. Não sei se sou capaz de esperar tanto tempo. Creio definhar se não conquistar seu coração para mim. Por outro lado, a segunda opção, embora de solução imediata, não me parece tão certa. Preciso de tempo para pensar, refletir, e decidir-me. Mas agradeço-te pelos conselhos, Chaveiro. Você é o melhor. (levanta-se, preparando para sair)
CHAVEIRO – De nada, minha jovem. Estou ao seu dispor. A propósito, este serviço foi orçado em 50 dilmas.
CLIENTE 4 – Tudo isso, Chaveiro? Mas não disponho de tal quantia em espécie comigo. Posso pagar-lhe com cheque?
CHAVEIRO – Mas é claro, senhorita.
CLIENTE 4 – Oh, mas isto é ótimo. (enfia as mãos no interior de sua bolsa) Felizmente, eu carrego este apetrecho em minha bolsa. Sejamos breves. (retira da bolsa um tabuleiro de xadrez, monta apenas algumas peças e ensaia duas ou três jogadas, até colocar o rei do Chaveiro em xeque) Xeque!
CHAVEIRO – Muito bem! E um belo xeque. Sinto-me pago, moça.
CLIENTE 4 – Agora preciso ir. Mas devo voltar em breve, em busca de seu coração, Chaveiro.
CHAVEIRO – Aguardarei ansioso, minha cara. (A Cliente 4 sai da loja. Olhando para o balcão, diz para si mesmo) Oh, ela esqueceu o tabuleiro aqui. Mas agora já foi.
(O Cliente 1 reaparece)
CLIENTE 1 – Estou de volta!
CHAVEIRO – Tão cedo não esperava vê-lo. Mas se retornou, é porque meus serviços agradaram.
CLIENTE 1 – (Gritando) Nada disso. Mais uma vez sua chave não funcionou!
CHAVEIRO – Então façamos uma nova cópia. Nada de desistirmos. É como eu sempre digo: a chave para o sucesso é a perseverança.
CLIENTE 1 – (Gritando) Basta! Não quero mais seus serviços! Já entrei em contato com aquele chaveiro cujo cartão peguei de seu outro cliente. E ele ficou de ir em minha casa daqui meia hora. Irá resolver o problema pessoalmente. Só vim até aqui para reaver o meu dinheiro.
CHAVEIRO – Seu dinheiro?
CLIENTE 1 – Sim, meu dinheiro! Como o serviço não foi realizado a contento, sinto-me em meu direito de reivindicar a devolução do montante pago.
CHAVEIRO – (olha para o tabuleiro em seu balcão. Em seguida, olha para o cliente e diz) O senhor aceitaria, por um acaso, o ressarcimento em forma de cheque?
CLIENTE 1 – (pego de surpresa) Não vejo nenhum mal. Desde que eu seja ressarcido.
CHAVEIRO – (desfaz o último movimento realizado pela Cliente 4, vira o tabuleiro 180 graus e diz) Pois bem, que assim seja então. (Repete o movimento de xeque realizado pela Cliente 4)
CLIENTE 1- Pois bem, estou ressarcido. Vira as costas e vai embora.
CHAVEIRO - (olhando para a plateia) E assim foi mais um dia de trabalho. Abaixa as portas e vai embora.

FIM.

Se este texto não fez nenhum sentido para você, tampouco o fez para mim.

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