Este texto segue um estilo teatral, nonsense. Para ler outro texto teatral nonsense já publicado neste blog (este outro pelo R), clique aqui. Meus agradecimentos a Srta. Rocha pela inestimável ajuda e comentários tecidos na fase de elaboração deste texto. Para conferir os trabalhos de minha amiga, acesse o blog dela clicando aqui.
Cena Única
Local da cena: Loja do
Chaveiro. Um pequeno ponto comercial, composto de um balcão de vidro, onde
estão expostos vários modelos de chaves e de fechaduras. Do lado de dentro do
balcão, está o chaveiro, confeccionando a cópia de uma chave. Na parede ao
fundo, dois papeis A4 estão pregados na parede. Num deles consta a tabela de
preços dos serviços prestados pelo chaveiro e noutro, em letras maiúsculas,
ocupando boa parte da página, alinhado à esquerda, constam os dizeres: “NÃO FASSO FIADO”. Uma porta dá
para o fundo da loja, inacessível ao público. Do lado de fora do balcão está um
cliente, de pé em frente ao balcão, aguardando a conclusão da cópia pelo
chaveiro.
CHAVEIRO – Já estou
terminando sua cópia, amigo. É dois segundos.
CLIENTE 1 – Espero que dessa
vez dê certo. Já é a terceira vez que tenho que retornar aqui na sua loja
porque uma chave que o senhor me copia não entra na fechadura da porta de casa.
CHAVEIRO – Eu sinto muito
pelo transtorno. Dessa vez vai funcionar, amigão.
CLIENTE 1 – É o que vamos
ver.
(Entra outro cliente na
loja)
CHAVEIRO – Boa tarde,
amigão.
CLIENTE 2 – Boa tarde. Você
tem algum DVD do Chaves?
CHAVEIRO – Tenho sim. Tenho
os volumes 1, 2 e 3. Sai 5 dilmas cada.
CLIENTE 2 – E se levar os
três tem algum desconto?
CHAVEIRO – (Pára o trabalho
e olha para o Cliente 2) Olha, se o senhor levar os três eu faço um preço bom
pro senhor. De vinte dilmas deixo pra quinze pro senhor, no pagamento à vista.
CLIENTE 2 – Então fechou. Eu
vou levar.
CHAVEIRO – (Abandona seu
trabalho de cópia da chave e pega os três DVDs numa gaveta, coloca numa sacola
e entrega pro cliente. O Cliente 1 observa a cena incrédulo, por ter sido passado pra trás no
atendimento) Tá aqui, amigão!
CLIENTE 2 – Beleza. (Entrega
uma nota de vinte reais para o chaveiro)
CHAVEIRO – O senhor não tem
trocado, não?
CLIENTE 2 – (Apalpa o bolso
da camisa social e em seguida a enfia no bolso, à procura de dinheiro) Vixi, o
pior é que eu não tenho. Tá ruim de troco?
CHAVEIRO – Então, eu até
tenho troco, mas tá na minha gaveta e ela tá trancada e eu perdi a chave.
CLIENTE 2 – Caramba, que
merda, hein? Pô, eu conheço um chaveiro muito bom, o cara é ponta firme, vou te
deixar um cartãozinho aqui. (Tira um cartão do bolso e coloca em cima do
balcão)
CHAVEIRO – Valeu, amigão.
CLIENTE 1 – Deixe um cartão pra mim
também.
CLIENTE 2 – Toma. (Entrega
um cartão para o Cliente 1) Bom, e como fazemos? O que você tem aí de 5 reais?
Mais algum DVD do Chavinho?
CHAVEIRO – Tenho não, amigo.
O volume 4 tá em falta, a procura tá sendo grande e eu não tive tempo de fazer
mais cópias dele ainda. Mas eu tenho aqui um DVD da Kelly Key, com uma
coletânea de canções dela mais o ensaio dela na Revista Playboy.
CLIENTE 2 – Opa, pode ser.
Me passe ela aqui. (Pega o DVD passado pelo chaveiro) Agora só não errar o
presente de aniversário do filhão, né gente? (diz rindo, dando uma cotovelada
no Cliente 1, este contrariado pela demora) Até mais pessoal! (Sai da loja)
CHAVEIRO – Até! (olhando
para o Cliente 1) O seu o que que era mesmo?
CLIENTE 1 – (Gritando) A
chave bendita!
CHAVEIRO – Ah, sim. Sim.
Aqui está, prontinha. A cópia e a original que o senhor me trouxe de modelo.
(Entrega as duas para o Cliente 1) São dez paus.
CLIENTE 1 – (Gritando) Dez paus por uma chave que eu já paguei e não funcionou?
CHAVEIRO – Olha, calma,
amigão. Eu tive meus gastos, essa é a terceira chave que eu gasto para resolver
seu problema. O senhor precisa entender o meu lado também.
CLIENTE 1 – Tudo bem, já chega
dessa ladainha. Mas é bom que funcione dessa vez. (Tira um baralho do bolso e
começa a folhear as cartas) Hum, mas que droga. Está faltando o dez de paus
desse baralho, acho que tirei ele quando fui jogar truco.
CHAVEIRO – Não tem problema,
faz por sete pro senhor, pra melhorar pro seu lado e pra ficar bom pra nós
dois, amigão.
CLIENTE 1 – (Falando baixo,
consigo mesmo) Sete de paus, sete de paus? Ah, achei! Aqui está, sete de paus.
Certinho?
CHAVEIRO – Certinho. Muito
obrigado senhor. Volte sempre!
CLIENTE 1 – (à parte, para a plateia) Espero nunca mais ter que voltar.
CHAVEIRO – (à parte, também
para a plateia) Eu sei que ele voltará.
(O Cliente 1 sai da loja, ao
mesmo tempo em que entra um garoto de 12 anos)
GAROTO – (arfando de
cansaço) Oi, seu chaveiro.
CHAVEIRO – Moleque! Por que
demorou tanto, assim? Que horário de almoço é esse que demora mais de 2 horas
pra voltar?
GAROTO – Desculpa seu
chaveiro, mas é que eu tava lá no...
CHAVEIRO – (interrompe a
fala do garoto) Não quero nem mais, nem menos. Preciso que você corra pra mim
fazer uma entrega lá na Banca do Tião, daqui a três quadras. Eu já teria ido lá, mas é que não posso
deixar a loja sozinha.
GAROTO – O que é pra levar
lá?
CHAVEIRO – Esse CD aqui.
(entrega para o garoto uma capinha protetora contendo o objeto indicado) Diga
para ele que no CD já tem o crack do
Brasfoot e a chave de registro do jogo.
GAROTO – Sim senhor, seu
chaveiro. E quanto ele tem que pagar?
CHAVEIRO – São cinco contos,
como nós combinamos. Ele já tá sabendo do preço. Mas avise pro Tião não bancar
o engraçadinho pra cima de mim: nada de contos dos Irmãos Grimm. Quero contos
que engrandeçam nossa cultura regional.
GAROTO – Sim senhor. Vou lá.
(sai correndo)
CHAVEIRO – Vá, meu filho.
(para si próprio, esfregando as mãos) Eis aí a minha próxima cliente.
(Entra uma mulher, de
aproximadamente 40 anos)
CLIENTE 3 – Boa tarde,
Chaveiro.
CHAVEIRO – Boa tarde. (em
tom galanteador, com uma certa mesura) Em que posso servi-la?
CLIENTE 3 – Chaveiro, aqui
você também troca segredo?
CHAVEIRO – Claro que sim! (coloca
os cotovelos sobre o balcão, apoiando o queixo nas mãos, começa a falar mais
baixo, em tom de fofoca) Vai, me conta: qual é o seu segredo?
CLIENTE 3 – (Também diminui
o tom de voz) Eu fico até constrangida de falar, mas é que a sua mulher está
dormindo com o açougueiro.
CHAVEIRO – (de súbito,
assume trejeitos homossexuais) Mentira? Como você sabe disso?
CLIENTE 3 – Porque o
açougueiro é meu marido, e eu flagrei os dois em pleno ato.
CHAVEIRO – E quando foi
isso?
CLIENTE 3 – Ontem à noite,
enquanto eu dormia. Em meu sonho.
CHAVEIRO – Impossível! Ontem
à noite eu algemei minha esposa junto a cabeceira da nossa cama, totalmente
despida, e joguei a chave fora. Pelo menos, foi assim que sucedeu em meu sonho!
Não seria possível para ela estar em dois lugares ao mesmo tempo, seria?
CLIENTE 3 – Oh, Chaveiro,
então qual é a chave deste mistério?
CHAVEIRO – Sinto muito,
minha senhora. Mas desvendar o segredo da chave de mistérios é um serviço que há
algum tempo já deixei de prestar, pois é muito difícil e dá pouco retorno.
CLIENTE 3 – (levando a mão
direita à testa, em tom de tragédia) Oh, é uma pena. (e após uma pausa) E qual
é o segredo que irá trocar pelo meu, Chaveiro?
CHAVEIRO – Ah, já ia me
esquecendo, minha caríssima. (e diminuindo o tom de voz, acrescenta) Mas devo
adverti-la que este é um segredo mui valioso, portanto deve permanecer guardado a sete chaves.
CLIENTE 3 – Literalmente?
CHAVEIRO – (arregala os
olhos para a Cliente 3) Que pergunta tola, minha senhora. Bem sabes a resposta!
CLIENTE 3 – Perdão,
Chaveiro. Rogo-te pelo seu perdão por tamanho disparate!
CHAVEIRO – (à parte, para a plateia) Que dramalhão! (e para a Cliente 3, em tom de voz mais baixo) O meu
segredo não deve ser confiado a ninguém. E ei-lo entregue para ti: debaixo
destas roupas, minha última peça consiste num ínfimo fio dental.
CLIENTE 3 – Oh, que
repugnante visão! Por que estás usando apenas fio dental?
CHAVEIRO – É que o creme
dental acabou e esqueci de comprar outro. Mas hoje mesmo passarei no mercado,
para voltar a escovar meus dentes.
CLIENTE 3 – Ah, mas assim é
melhor. (e após uma pausa) E me diga uma coisa: quanto foi essa troca de
segredos, Chaveiro?
CHAVEIRO – Hum, deixe-me
ver... O seu segredo foi bem revelador. Em contrapartida, eu o troquei por um a
altura. Portanto, são cinquentinha.
CLIENTE 3 – Cinquentinha eu
não tenho. Mas posso te pagar com uma 51? (diz isso, ao mesmo tempo em que
retira da bolsa uma garrafa de Pirassununga)
CHAVEIRO – Aceito!
CLIENTE 3 – Mas antes de
consumar o pagamento, eu solicito um conselho seu, Chaveiro.
CHAVEIRO – Será um prazer.
Sobre o que se trata?
CLIENTE 3 – É que já faz
exatamente uma semana que não consigo esvaziar o conteúdo dos meus intestinos.
E eu queria saber se o senhor tem a chave para solucionar esse problema.
CHAVEIRO – Ah, mas isso é
muito simples. (abre uma gaveta e de lá retira um poderoso laxante) Aqui está:
esse remedinho é a chave que irá destrancar seus esfíncteres e que abrirá as
portas do seu alívio. Recomendo que tome uma colherzinha desse produto, e que
depois disso, passe no meu primo Relojoeiro, que ele tem uma solução para
intestinos preguiçosos que não funcionam na hora certa. Ele diz que é tiro e
queda: pegue esse produto com ele, e seu intestino continuará funcionando como
um reloginho.
CLIENTE 3 – (sorrindo) Me
ajudou muito, Chaveiro. Até mais.
CHAVEIRO – Foi um prazer
ajudá-la, minha cara. (A Cliente 3 deixa a loja) Mais uma cliente satisfeita! E
vem a próxima.
(Uma moça de aproximadamente
25 anos, muito bonita, entra na loja)
CHAVEIRO – Boa tarde, moça.
Em que posso ajudá-la?
CLIENTE 4 – Boa tarde,
Chaveiro. Estou profundamente apaixonada. Estou desesperada! Preciso de sua
ajuda!
CHAVEIRO – Acalme-se, meu
bem. Conte seu problema para mim.
CLIENTE 4 – Oh Chaveiro, me
apaixonei por um homem mais velho, mas ele não dá a mínima para mim. Quero que
me ajude a encontrar a chave para o coração deste homem.
CHAVEIRO – E quem é este
homem? Me fale mais sobre ele, para que eu possa ajudá-la.
CLIENTE 4 –Quão tolo, és,
Chaveiro! Este homem és tu!
CHAVEIRO – Eu?
CLIENTE 4 – Sim. Tu,
Chaveiro. E como faço para ter acesso ao interior de seu coração?
CHAVEIRO – Antes, diga-me,
menina: o que faz da vida?
CLIENTE 4 – Sou estudante de
Serviço Social.
CHAVEIRO – Perdeste seu
tempo então.
CLIENTE 4 – Como disse?
CHAVEIRO – Digo que, se
acesso ao interior de meu coração é o que queres, está no caminho errado. Não o
conseguirá através do Serviço Social. Precisas cursar Medicina, fazer
especialização em cardiologia, e só assim terás acesso ao interior de meu
coração.
CLIENTE 4 – Não há outro
modo, meu senhor?
CHAVEIRO – Absolutamente! A
menos, é claro, que escolhas o caminho mais fácil.
CLIENTE 4 – E qual seria
este?
CHAVEIRO – Bem, há o
açougueiro. E, como deves saber, ele possui facas, instrumentos perfurocortantes, verdadeiramente
afiados. Podem auxiliar-te a acessar o interior de meu coração.
CLIENTE 4 – Tens razão,
Chaveiro. A primeira opção me parece a certa, porém, está tão distante. Não sei
se sou capaz de esperar tanto tempo. Creio definhar se não conquistar seu
coração para mim. Por outro lado, a segunda opção, embora de solução imediata,
não me parece tão certa. Preciso de tempo para pensar, refletir, e decidir-me.
Mas agradeço-te pelos conselhos, Chaveiro. Você é o melhor. (levanta-se,
preparando para sair)
CHAVEIRO – De nada, minha
jovem. Estou ao seu dispor. A propósito, este serviço foi orçado em 50 dilmas.
CLIENTE 4 – Tudo isso,
Chaveiro? Mas não disponho de tal quantia em espécie comigo. Posso pagar-lhe
com cheque?
CHAVEIRO – Mas é claro,
senhorita.
CLIENTE 4 – Oh, mas isto é
ótimo. (enfia as mãos no interior de sua bolsa) Felizmente, eu carrego este
apetrecho em minha bolsa. Sejamos breves. (retira da bolsa um tabuleiro de
xadrez, monta apenas algumas peças e ensaia duas ou três jogadas, até colocar o
rei do Chaveiro em xeque) Xeque!
CHAVEIRO – Muito bem! E um
belo xeque. Sinto-me pago, moça.
CLIENTE 4 – Agora preciso
ir. Mas devo voltar em breve, em busca de seu coração, Chaveiro.
CHAVEIRO – Aguardarei
ansioso, minha cara. (A Cliente 4 sai da loja. Olhando para o balcão, diz para
si mesmo) Oh, ela esqueceu o tabuleiro aqui. Mas agora já foi.
(O Cliente 1 reaparece)
CLIENTE 1 – Estou de volta!
CHAVEIRO – Tão cedo não
esperava vê-lo. Mas se retornou, é porque meus serviços agradaram.
CLIENTE 1 – (Gritando) Nada
disso. Mais uma vez sua chave não funcionou!
CHAVEIRO – Então façamos uma
nova cópia. Nada de desistirmos. É como eu sempre digo: a chave para o sucesso
é a perseverança.
CLIENTE 1 – (Gritando)
Basta! Não quero mais seus serviços! Já entrei em contato com aquele chaveiro
cujo cartão peguei de seu outro cliente. E ele ficou de ir em minha casa daqui meia
hora. Irá resolver o problema pessoalmente. Só vim até aqui para reaver o meu
dinheiro.
CHAVEIRO – Seu dinheiro?
CLIENTE 1 – Sim, meu
dinheiro! Como o serviço não foi realizado a contento, sinto-me em meu direito
de reivindicar a devolução do montante pago.
CHAVEIRO – (olha para o
tabuleiro em seu balcão. Em seguida, olha para o cliente e diz) O senhor
aceitaria, por um acaso, o ressarcimento em forma de cheque?
CLIENTE 1 – (pego de
surpresa) Não vejo nenhum mal. Desde que eu seja ressarcido.
CHAVEIRO – (desfaz o último movimento realizado pela Cliente 4, vira o tabuleiro 180 graus e diz) Pois bem, que assim seja então. (Repete o movimento de xeque realizado pela Cliente 4)
CLIENTE 1- Pois bem, estou ressarcido. Vira as costas e vai embora.
CHAVEIRO - (olhando para a plateia) E assim foi mais um dia de trabalho. Abaixa as portas e vai embora.
FIM.
Se este texto não fez nenhum sentido para você, tampouco o fez para mim.