Dia 15 de junho de 2013 - acontecimentos importantes:
- aniversário de minha querida irmã;
- abertura da Copa das Confederações com a partida Brasil x Japão;
- dia em que fui preso pela primeira vez.
Exatamente cinco meses depois, decidi iniciar uma narrativa reconstituindo a minha
primeira experiência prisional. Pretendo dividir o texto em dez capítulos (provavelmente em cinco postagens). O nome dos capítulos, para quem for conhecedor, são com os nomes dos capítulos do livro "Vigiar e Punir", de Michel Foucault. O objetivo deste texto é tratar um assunto sério, de forma bem humorada, mas sem perder um caráter crítico de denúncia do que aconteceu naquele dia. Para transmitir uma sensação de realidade durante a narrativa, em alguns momentos, serei obrigado a utilizar os palavrões que de fato foram ditos naquele dia. Então, sem mais delongas, passemos a minha história, baseada em fatos reais...
CAPÍTULO
1 – ILEGALIDADE E DELINQUÊNCIA
Eu estava deitado no chão,
com um policial montado nas minhas costas, me imobilizando tal qual o faria um
lutador Krav Magá, enquanto outro apontava uma arma para mim. Ao mesmo tempo em
que 90% do meu cérebro se concentrava na dor causada pelas carícias do
policial, os 10% restantes tentava compreender como eu conseguira chegar àquela
situação.
Tudo começou quando eu tive
a estúpida ideia de ir a uma manifestação que acontecia próximo ao Estádio
Nacional de Brasília. Não, eu não chamei a manifestação de estúpida. Apenas a
minha ideia de ir até lá o foi. Junto comigo, consegui arrastar um amigo – o
Chris –, que nos levou até as imediações do Estádio em seu carro. É claro que
posteriormente mamãe achou que a culpa de tudo era do Chris, que ele era uma
péssima influência para mim, que eu não sabia escolher muito bem as minhas amizades,
e todo aquele blá blá blá que as mães superprotetoras costumam dizer a respeito
dos filhos, achando que os culpados de nossas enrascadas sempre são os filhos
das outras mães.
Foto de Chris, depois de ser preso. O ponto preto na foto é para preservar
a identidade de meu amigo militante.
Considero a causa da
manifestação muito nobre. Realmente, era pertinente a pauta dos manifestantes
(embora tardia). Mas para quem não compreende o que eu fui fazer ali naquela
manifestação, ofereço uma explicação simples. Toda a minha vida... Tá certo,
não toda a minha vida, mas pelo menos nos últimos oito anos da minha vida, eu estive
reclamando dos políticos e de tudo que é feito de errado nesse país. E essa era
a minha primeira chance de fazê-lo perante câmeras, dando força à massa, com a
possibilidade de ser ouvido (juntamente com os demais) e fazer alguma
diferença, ao invés de reclamar junto a uma roda de amigos, sem nenhuma mudança
real no mundo.
Então, explicado o motivo
que me levou até lá, vamos aos fatos. Depois de estacionar o carro a quase um
quilômetro de distância da manifestação, meu amigo e eu descemos do veículo,
ele carregando apenas sua carteira, enquanto eu, que não uso carteira, levava
comigo meu dinheiro e minha identidade na algibeira das calças. Vai que eu preciso dela, pensei comigo.
Mal sabia eu o quão certo eu estava naquele meu pensamento.
Ao chegar a minha primeira
manifestação, vi que o clima era pesadíssimo. Nunca vi tantos policiais em
minha vida. Nem quando eu peguei seis estrelas no GTA San Andreas. Lá tinha gambés de tudo quanto é tipo, policiais
para todos os gostos: PM, Cavalaria, CHOQUE, BOPE, Segurança Nacional. E é
claro, havia os manifestantes, alguns isolados iguais a mim, que souberam do
movimento através da comoção promovida via facebook,
outros fazendo parte de algum movimento político local – em sua maioria do
movimento “Maconheiros da UnB”.
CJ ferrado com seis estrelas. Nem lá no jogo aparece tanto policial assim.
VIVA O CHOQUE!
Manifestantes estavam tranquilos, antes do pau começar a comer de verdade.
A Cavalaria formava uma
linha impedindo a passagem dos manifestantes para o outro lado. E no outro
lado, o que tinha era o Estádio. O senhor Sandro Avelar, Secretário de
(In)Segurança Pública do Distrito Federal, foi inteligente ao deixar a
manifestação bem longe do Estádio e, consequentemente, dos holofotes da
imprensa. Ora, manifestação que não causa barulho e incômodo, manifestação que
não é ouvida, não tem sentido de existir. Por sorte, descobri nesses grupos
pessoas muito engajadas e corajosas – com uma coragem que confesso não tenho –,
que tomavam a frente, encaravam os policiais e a Cavalaria, e tentavam furar o
bloqueio. Em dado momento, o bloqueio foi ultrapassado de maneira magistral,
pois os manifestantes conseguiram ficar lado a lado com os torcedores, na fila
que dava acesso ao Estádio. Aí do ponto de vista do ilustríssimo
tenente-coronel Zilfrank Antero, creio que a situação ficou mais delicada, pois
descer a porrada em vândalos vagabundos é uma coisa, agora bater em torcedor, o
“cidadão de bem”, já é uma coisa completamente diferente.
O bandido do Governador do Distrito Federal Agnelo Queiroz,
e seu pupilo pau mandado o Secretário de Segurança Pública do GDF,
Sandro Avelar. Diz a lenda que Agnelo é médico, e que Avelar entende de segurança pública.
Esqueci-me de dizer que eu
não sou cidadão de bem. Eu sou uma pessoa extremamente perigosa, que ofereço
riscos descomunais a toda sociedade, portanto é papel da polícia proteger as
pessoas de bem da minha pessoa.
Nesse momento em que
torcedores alienados e manifestantes ficaram próximos, formando um estranho
grupo de pessoas em sua maioria vestidas de amarelo (vai Brasil!) ou de preto,
a tensão aumentou, com troca de elogios de lado a lado. Não serei hipócrita de
dizer que os manifestantes foram gentlemen,
esbanjando amor e educação. Mas como eu estava do lado de cá, obviamente
defenderei meus companheiros e lhes apresentarei a estupidez que ouvi vinda do
lado de lá, dos torcedores. Um senhor, com lá seus 60 anos, na fila que dava
acesso ao Estádio, gritou para nós dizendo que éramos um bando de invejosos,
que não tínhamos condições para comprar um ingresso e por isso ficávamos
fazendo baderna ao invés de irmos estudar para almejarmos uma vida melhor.
Considerando que aquela bobagem dita pelo tiozinho fosse verdade – e, pensando
bem, no fundo é, pois tem muita gente em todo o país que gostaria de ter
condições de assistir a um jogo da seleção brasileira nos estádios –, gostaria
apenas que ele me dissesse onde estão as escolas de qualidade para o povo
estudar e almejar essa vida melhor, o que lhes permitirá, quem sabe, num dia
longínquo, ter seu próprio dinheiro para comprar o ingresso de uma pífia
partida da seleção brasileira.
Não sei em que momento
aconteceu, mas alguém, de maneira muito inteligente, remodelou o posicionamento
da fila de torcedores, deixando-os agora em zigue-zague, numa área de acesso
restrito aos mesmos, por sua vez deixando-nos isolados, ainda que próximos a
eles. Foi nesse momento que escutei o primeiro tiro. Haviam lançado em nossa
direção uma bomba. Eu, muito inteligente, fiquei olhando deslumbrado para o objeto
que caía próximo a mim. Assim que atingiu o solo, o mesmo se desfez numa nuvem
de fumaça, causando tosse, irritação nos olhos e na garganta e, os três
componentes mais importantes para a estratégia policial: desespero, correria e
dispersão dos manifestantes.
Ainda fui obrigado a ouvir o
narrador oficial do Estádio dizendo para os torcedores que houve um pequeno
tumulto do lado de fora do Estádio, mas que a polícia já havia controlado a
situação e que não era para as pessoas entrarem em pânico. Um gás fora
disparado contra os manifestantes, mas ele não era tóxico. Ah, apenas se
certifiquem de tapar a boca, nariz e olhos com um pano – se possível todos os
outros orifícios do corpo também. E caso tenha alguma irritação, NÃO COCE OS
OLHOS!
CAPÍTULO
2 – A OSTENTAÇÃO DOS SUPLÍCIOS
Quando percebi, após me
afastar ao máximo do local onde a bomba caíra, eu e mais um grupo de
aproximadamente vinte pessoas estávamos afastadas do grupo maior de
manifestantes. Felizmente, meu amigo Chris ainda estava comigo. Tivemos que dar
uma volta para tentar voltar junto ao grupo principal, pois uma das mais
importantes regras do Manual Manifestante Federal é: não ande sozinho, nem em
pequenos grupos. Os policiais são como leões no deserto. E nós, como antílopes.
Quem já assistiu qualquer documentário do Discovery
Channel sobre as savanas africanas sabe muito bem o que acontece quando um
antílope se dispersa do bando...
Situação de rua do lado de fora do Estádio Nacional de Brasília na tarde do dia 15 de junho de 2013.
Um dos problemas da
manifestação é saber quem está no comando. Por exemplo, se eu gritar “ATACAR!”
no meio da massa, é perigoso, dado os ânimos alterados, que alguém obedeça ao
meu comando. Portanto, quando alguém assumiu a liderança de nosso grupo
dissidente e decidiu puxar alguns cones e placas de ferro no meio da rua,
impedindo a passagem de carros, outras pessoas que ali estavam imitaram a
primeira e fizeram o mesmo. Inclusive, uma das pessoas que teve esta impensada
– ou não – atitude, foi meu amigo Chris. Para ver esta cena, clique aqui.
Eu fiquei apenas observando,
desejando mentalmente controlar a ação de meus colegas, para impedi-los de tal
gesto. Era ilógico o que faziam. Ninguém pretendia ficar ali para resistir e
manter o trânsito fechado. Então, para que fechar a pista? Evidentemente, a
merda aconteceu logo em seguida. Um dos manifestantes segurava um cone,
levando-o em direção a rua, quando um policial de moto chegou e começou a
falar-lhe educadamente:
- Tá de brincadeira comigo,
porra? Pensa que eu sou palhaço, caralho? Pega essa merda e tira já daqui. – e
após uma pausa, como se não tivesse sido suficientemente intimidador,
acrescentou: - Porra!
Nesse momento, Chris
abaixou-se do alto de seu um metro e oitenta e cinco para cochichar no meu
ouvido um sábio conselho, que eu paguei muito caro por não seguir
imediatamente. Acho melhor a gente dar um
pique até ali, Kily, pois o policial passou o rádio pros parceiros dele,
disse-me Chris. Entretanto, eu
continuei imóvel, observando deslumbrado o policial dando uma comida de rabo no
manifestante. Não percebi a seriedade da situação. Olhei para o lado para dizer
“vamos” para Chris, mas acabei parando no “vã”. Ele não estava mais ao meu
lado. Procurei-o, e vi ao longe meu amigo negro correndo, já a uns cem metros
de distância.
Desta vez, fui mais rápido e
prontamente comecei a correr. Mas nem tinha passado para segunda marcha ainda,
quando escutei um tiro vindo em minha direção. Instintivamente, levei as mãos
ao rosto, tentando me proteger – como se eu fosse capaz de segurar o projétil
com as mãos e me salvar desta forma. Olhei para os lados, ao mesmo tempo que
parava de correr, procurando de onde viera o tiro. Foi quando vi um policial na
garupa de uma moto, apontando uma arma maior do que eu, gritando para mim:
DEITA NO CHÃO! DEITA NO CHÃO!
Abre parênteses:
Hoje, quando reconstruo
esses fatos, penso o que poderia ter acontecido de diferente. Imagino como eu teria
me saído se eu ignorasse o comando policial e tivesse tentado correr em
zigue-zague, quantos milissegundos eu conseguiria fugir até que o policial
frustrasse a minha fuga. Pensando bem, três coisas poderiam acontecer se eu
tivesse feito isso. A primeira possibilidade é que o policial ficaria puto e
daria um tiro em mim, mirando no lugar mais doloroso possível, ou naquele que
provavelmente me trouxesse maiores transtornos futuros – leia-se “no meio da
minha bunda”. E a segunda possibilidade, não melhor do que a primeira, com base
no que eu vi na televisão no dia seguinte, era do policial também ficar puto e
decidir brincar de Carmageddon no
meio da rua, me atropelando para me parar. Uma terceira possibilidade, que eu
considero tão remota que só vou enumerá-la a título de curiosidade, é a de que
eu sairia correndo tão rápido que o policial sequer conseguiria focalizar a
mira em mim, abismado com tamanha velocidade. Eu fugiria dele e ficaria
chamando-o mentalmente de otário, depois disso, deixando-o sem dormir por
várias noites, até superar por ter fracassado na prisão do Usain Bolt brasileiro.
Os policiais adotaram uma abordagem educada, respeitando os Direitos Humanos,
parando manifestantes que corriam com todo o carinho do mundo.
O jogo que os policiais pensaram estar jogando durante o expediente.
Felizmente, nada disso
aconteceu, caso contrário eu descobriria que a única possibilidade benéfica
para mim (a terceira) também era a única impossível. Rapidamente, eu olhei para
o Estádio e só então notei que eu estava muito longe dele, e consequentemente
também longe do restante dos manifestantes. Considerei ainda que o policial me
tinha bem no centro de sua mira. Naquele momento não importava se sua mira
concentrava-se em minha cabeça, em meu peito ou em minha virilha, o que
importava é que ele estava armado e que dentro da arma tinha uma bala com o meu
nome escrito nela. Eu não sabia se a bala era de borracha ou de verdade
(daquelas que matam), eu só sabia que era daquelas que machucam dodói. Foi por
isso que eu obedeci ao comando policial, o que não adiantou muita coisa, pois
no fim das contas, dentre várias infrações penais a mim cominadas, eu vim a
responder por desacato e resistência. A única resistência que eu tive foi
resistência a dor, como verão a seguir.
Fecha parênteses.
Continua...
Continua...
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