Última postagem de 2015.¹
Gervásio adentrou a lotérica, pegou um volante da Mega Sena, para fazer sua fezinha. Tinha prometido para Dona Elizete, a senhora sua esposa, que não apostaria mais o dinheiro por ele ganho a duras penas. Contudo, o ocorrido da noite derradeira lhe fora muito significativo: Gerônimo, seu finado irmão, lhe aparecera em sonho, em meio a uma aura luminosa, dizendo que sua sorte estava para mudar. Bastaria a Gervásio seguir seu conselho e jogar na sequência que seu irmão lhe recomendara.
E Gervásio, homem de fé, decidiu obedecer. Já havia jogado na Mega Sena centenas de vezes. Perdera mais de um milhar de reais na jogatina, mas sempre sonhara de que sua vez chegaria. Contudo, recentemente, Dona Elizete batera o pé, brigando com Gervásio, dizendo que ele deveria parar com as apostas. Era isso, ou largar a já sagrada cerveja de sexta-feira após o expediente. Tendo que escolher entre o certo e o improvável, Gervásio usara os neurônios, e optara pela birita. Considerando-se um homem de palavra, Gervásio mantivera a promessa feita à esposa até então, sob pena de ser abandonado pela patroa. Com as constantes dificuldades financeiras enfrentadas pelo clã, Gervásio não podia se dar ao luxo de desperdiçar sete contos semanais, o que totalizava quase meio salário corrente. Ainda mais com mulher e mais três bocas pra alimentar.
No entanto, o sonho fora tão intenso, que Gervásio decidira faltar com sua palavra apenas uma vez. "A mulé há de entender", pensou Gervásio, justificando-se. Quando visse a bolada que haviam ganhado, a promessa quebrada não significaria nada. Com a caneta nas mãos trêmulas de emoção, Gervásio assinalou os números 4, 8, 15, 16, 23 e 42, conforme lembrava que Gerônimo lhe falara em sua elaboração onírica. Enfrentou a fila, enquanto já se deleitava antecipadamente com o destino que daria para o prêmio que receberia em breve. Entraria em 2016 com o pé direito!
A fila estava grande. Assim como ele, muitas pessoas sonhavam com a mudança de vida que a bolada da Mega Sena lhes propiciariam. Sentiu pena dos demais jogadores. Afinal de contas, a ele fora concedida a divina revelação, por meio da figura de seu santo e falecido irmão, da sequência a ser sorteada dali a algumas horas. Chegara a sua vez. Concretizara a aposta. Para os três e cinquenta. A atendente entregou seu recibo, contendo o número apostado. E assim fora selado seu maravilhoso destino.
Foi para casa, cantarolando, assobiando de felicidade. Quando lá chegou, Dona Elizete estava na rua. Os meninos se atracavam num misto de brincadeira e briga. Um deles pedira socorro ao pai, para que este tomasse partido na briga. Entretido que estava com seus botões, Gervásio seguira para o quarto. Lá, fechou a porta, pensando onde esconderia o bilhete até saber do resultado. Abriu o guarda-roupa. Olhou para seu paletó, o mesmo que usara no dia em que desposara Dona Elizete. Abriu o paletó, inserindo o bilhete no bolso interno de sua roupa preferida, que usara apenas no dia do matrimônio, e mesmo assim guardara com enorme carinho.
Saiu. Voltou. Almoçou com a família. Conversaram trivialidades. Saiu novamente, agora com toda a família. Passearam. Passaram pela frente de uma sorveteria. Ao ouvir os filhos lhe pedirem por sorvete, sentiu um aperto no coração, uma vez que não tinha um trocado no bolso. Tal aperto, contudo, se desvaneceu, ao pensar que, dentro de poucas horas, não só compraria os sorvetes para os filhos, como a própria sorveteria, a padaria, o mercadinho e até mesmo o açougue... ah, o açougue!
De noitinha, Gervásio inventou uma desculpa para Dona Elizete, para poder sair. Queria ir no Bar do Tonho, onde o sorteio era transmitido ao vivo pela TV. Deixara o bilhete em casa mesmo, justificando para si mesmo que já sabia de cor os números em que jogara. Sentado no bar, pedira para Tonho fiar-lhe uma cerveja. Com um resmungo, Tonho entregara-lhe garrafa e copo. Gervásio começou a bebericar a cerva, enquanto aguardava o início do sorteio, com uma ansiedade enorme.
E eis que inicia o sorteio. O primeiro número que sai é o 16. Gervásio sorri, cheio de fé. A seguir, sai o 42. A revelação do sonho de fato fora real! E assim, número após número, Gervásio vê seu sonho se concretizar, até que a última bola, o 23, torna realidade aquilo que ele já antegozara o dia todo: estava milionário! Com o coração a mil por hora, conteve o grito que estava entalado em sua garganta - afinal de contas, era melhor afastar qualquer olhar invejoso que viesse a cobiçar seu prêmio -, levantando para se dirigir para casa, contar as boas novas para a companheira.
Assim que se levantou, Gervásio sentiu as pernas moles. Quase caiu no chão, mas conseguiu manter-se de pé. Nunca vivenciara um estado de emoção tão intenso. Nem quando selara diante de Deus sua união com Dona Elizete. Começou a caminhar, ofegante. Sentiu a palma das mãos suando. Além de sudorese, midríase, hiperventilação e taquicardia, assim que saiu do recinto, sentiu a garganta se fechar. Agora, sem mais conseguir respirar, sentiu o desespero a tomar-lhe conta. Junto com a dificuldade para buscar oxigênio, o peito subitamente começou a doer, de tal forma que Gervásio nem teve tempo de tomar consciência de que era vitimado por um ataque cardíaco fulminante. E assim, morria Gervásio, pobre, mas teoricamente, um milionário.
Ao ver Gervásio caído na calçada, os bêbados do bar o acudiram. Os mais sóbrios logo o identificaram, e um deles assumiu a difícil tarefa de anunciar para Dona Elizete que agora ela enviuvara. Após a trágica revelação, em que Dona Elizete precisou ser amparada pela vizinha, tudo se sucedeu de forma automática. O reconhecimento do corpo de Gervásio, o contato com a funerária, o aviso aos demais parentes, e a escolha da roupa com a qual o marido seria enterrado. Dona Elizete, entorpecida, acabou por escolher o paletó que o recém morto utilizara no casório deles. Escolha esta da qual ela veio a se arrepender amargamente dias depois. Afinal de contas, ela remetia a um dos momentos mais felizes que Dona Elizete tivera com o marido. O dia do "sim".
O paletó foi levado até a funerária, onde o agente vestiu o cadáver, com certa dificuldade, uma vez que este já atingira o rigor mortis. E eis que Gervásio foi velado, homenageado, aplaudido, despedido e enterrado com seu paletó, levando literalmente ao túmulo o segredo de sua premiação milionária na Mega Sena da virada.
¹ Não atingi minha meta de publicar 24 textos no ano de 2015, mas que se dane também. Eu já tô rico mesmo. Nem preciso disso aqui. Beijos, e até 2016! =D