sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Gervásio

Última postagem de 2015.¹

Gervásio adentrou a lotérica, pegou um volante da Mega Sena, para fazer sua fezinha. Tinha prometido para Dona Elizete, a senhora sua esposa, que não apostaria mais o dinheiro por ele ganho a duras penas. Contudo, o ocorrido da noite derradeira lhe fora muito significativo: Gerônimo, seu finado irmão, lhe aparecera em sonho, em meio a uma aura luminosa, dizendo que sua sorte estava para mudar. Bastaria a Gervásio seguir seu conselho e jogar na sequência que seu irmão lhe recomendara.

E Gervásio, homem de fé, decidiu obedecer. Já havia jogado na Mega Sena centenas de vezes. Perdera mais de um milhar de reais na jogatina, mas sempre sonhara de que sua vez chegaria. Contudo, recentemente, Dona Elizete batera o pé, brigando com Gervásio, dizendo que ele deveria parar com as apostas. Era isso, ou largar a já sagrada cerveja de sexta-feira após o expediente. Tendo que escolher entre o certo e o improvável, Gervásio usara os neurônios, e optara pela birita. Considerando-se um homem de palavra, Gervásio mantivera a promessa feita à esposa até então, sob pena de ser abandonado pela patroa. Com as constantes dificuldades financeiras enfrentadas pelo clã, Gervásio não podia se dar ao luxo de desperdiçar sete contos semanais, o que totalizava quase meio salário corrente. Ainda mais com mulher e mais três bocas pra alimentar.

No entanto, o sonho fora tão intenso, que Gervásio decidira faltar com sua palavra apenas uma vez. "A mulé há de entender", pensou Gervásio, justificando-se. Quando visse a bolada que haviam ganhado, a promessa quebrada não significaria nada. Com a caneta nas mãos trêmulas de emoção, Gervásio assinalou os números 4, 8, 15, 16, 23 e 42, conforme lembrava que Gerônimo lhe falara em sua elaboração onírica. Enfrentou a fila, enquanto já se deleitava antecipadamente com o destino que daria para o prêmio que receberia em breve. Entraria em 2016 com o pé direito!

A fila estava grande. Assim como ele, muitas pessoas sonhavam com a mudança de vida que a bolada da Mega Sena lhes propiciariam. Sentiu pena dos demais jogadores. Afinal de contas, a ele fora concedida a divina revelação, por meio da figura de seu santo e falecido irmão, da sequência a ser sorteada dali a algumas horas. Chegara a sua vez. Concretizara a aposta. Para os três e cinquenta. A atendente entregou seu recibo, contendo o número apostado. E assim fora selado seu maravilhoso destino.

Foi para casa, cantarolando, assobiando de felicidade. Quando lá chegou, Dona Elizete estava na rua. Os meninos se atracavam num misto de brincadeira e briga. Um deles pedira socorro ao pai, para que este tomasse partido na briga. Entretido que estava com seus botões, Gervásio seguira para o quarto. Lá, fechou a porta, pensando onde esconderia o bilhete até saber do resultado. Abriu o guarda-roupa. Olhou para seu paletó, o mesmo que usara no dia em que desposara Dona Elizete. Abriu o paletó, inserindo o bilhete no bolso interno de sua roupa preferida, que usara apenas no dia do matrimônio, e mesmo assim guardara com enorme carinho.

Saiu. Voltou. Almoçou com a família. Conversaram trivialidades. Saiu novamente, agora com toda a família. Passearam. Passaram pela frente de uma sorveteria. Ao ouvir os filhos lhe pedirem por sorvete, sentiu um aperto no coração, uma vez que não tinha um trocado no bolso. Tal aperto, contudo, se desvaneceu, ao pensar que, dentro de poucas horas, não só compraria os sorvetes para os filhos, como a própria sorveteria, a padaria, o mercadinho e até mesmo o açougue... ah, o açougue!

De noitinha, Gervásio inventou uma desculpa para Dona Elizete, para poder sair. Queria ir no Bar do Tonho, onde o sorteio era transmitido ao vivo pela TV. Deixara o bilhete em casa mesmo, justificando para si mesmo que já sabia de cor os números em que jogara. Sentado no bar, pedira para Tonho fiar-lhe uma cerveja. Com um resmungo, Tonho entregara-lhe garrafa e copo. Gervásio começou a bebericar a cerva, enquanto aguardava o início do sorteio, com uma ansiedade enorme.

E eis que inicia o sorteio. O primeiro número que sai é o 16. Gervásio sorri, cheio de fé. A seguir, sai o 42. A revelação do sonho de fato fora real! E assim, número após número, Gervásio vê seu sonho se concretizar, até que a última bola, o 23, torna realidade aquilo que ele já antegozara o dia todo: estava milionário! Com o coração a mil por hora, conteve o grito que estava entalado em sua garganta - afinal de contas, era melhor afastar qualquer olhar invejoso que viesse a cobiçar seu prêmio -, levantando para se dirigir para casa, contar as boas novas para a companheira.

Assim que se levantou, Gervásio sentiu as pernas moles. Quase caiu no chão, mas conseguiu manter-se de pé. Nunca vivenciara um estado de emoção tão intenso. Nem quando selara diante de Deus sua união com Dona Elizete. Começou a caminhar, ofegante. Sentiu a palma das mãos suando. Além de sudorese, midríase, hiperventilação e taquicardia, assim que saiu do recinto, sentiu a garganta se fechar. Agora, sem mais conseguir respirar, sentiu o desespero a tomar-lhe conta. Junto com a dificuldade para buscar oxigênio, o peito subitamente começou a doer, de tal forma que Gervásio nem teve tempo de tomar consciência de que era vitimado por um ataque cardíaco fulminante. E assim, morria Gervásio, pobre, mas teoricamente, um milionário.

Ao ver Gervásio caído na calçada, os bêbados do bar o acudiram. Os mais sóbrios logo o identificaram, e um deles assumiu a difícil tarefa de anunciar para Dona Elizete que agora ela enviuvara. Após a trágica revelação, em que Dona Elizete precisou ser amparada pela vizinha, tudo se sucedeu de forma automática. O reconhecimento do corpo de Gervásio, o contato com a funerária, o aviso aos demais parentes, e a escolha da roupa com a qual o marido seria enterrado. Dona Elizete, entorpecida, acabou por escolher o paletó que o recém morto utilizara no casório deles. Escolha esta da qual ela veio a se arrepender amargamente dias depois. Afinal de contas, ela remetia a um dos momentos mais felizes que Dona Elizete tivera com o marido. O dia do "sim".

O paletó foi levado até a funerária, onde o agente vestiu o cadáver, com certa dificuldade, uma vez que este já atingira o rigor mortis. E eis que Gervásio foi velado, homenageado, aplaudido, despedido e enterrado com seu paletó, levando literalmente ao túmulo o segredo de sua premiação milionária na Mega Sena da virada.

Numbers


¹ Não atingi minha meta de publicar 24 textos no ano de 2015, mas que se dane também. Eu já tô rico mesmo. Nem preciso disso aqui. Beijos, e até 2016! =D

domingo, 8 de novembro de 2015

Tipos de Relacionamento

¹

Já faz algum tempo que o namoro tradicional deixou de ser a única via das pessoas de terem seus relacionamentos íntimos. O objetivo desse textículo é discorrer sobre outros tipos de relacionamento que estão na moda atualmente. Mas antes de começarmos a apresentar quais são, e seus prós e contras, é importante refletirmos sobre qual é a motivação pela qual as pessoas buscam relacionamentos na vida adulta.

Pensando sobre o assunto, acredito que as pessoas buscam relacionamentos pelos seguintes motivos (do mais importante para o menos importante): intimidade emocional, suporte social, alguém pra esquentar seu pé nas noites frias, constituição de família e de projetos de vida e contato sexual. No entanto, a ideia de uma relação para toda a vida vem a cada dia perdendo mais sua força, sendo substituída por outras concepções de relacionamentos. E a seguir, apresentarei algumas delas:


1. Amor platônico

A.mor-pla.tô.ni.co. (do nome próprio, Plato). sm. = Originalmente, o amor inenarrável que Platão sentia pelo filósofo e jogador de futebol Sócrates. O amor platônico é caracterizado por ter sua existência apenas no mundo das ideias do sujeito que ama, uma vez que o sujeito que é amado desconhece tal sentimento. Em alguns casos, o sujeito amado pode nem mesmo existir, tornando ainda mais difícil que o mesmo saiba que é amado.

Vantagens: (1) uma vez que o sujeito amado jamais é confrontado com a ideia de tal amor, não há a possibilidade de se levar um pé na bunda; (2) poucas brigas.

Desvantagens: (1) é tudo de mentira; (2) seu pé continua gelado no frio.

Sócrates: o amor platônico de Platão.

Cammy: um amor platônico de minha infância.


2. Friendzone

Friend.zone. (fz). sf. = Nível de amizade ambíguo e obscuro entre um amante e alguém que não corresponde². Em geral, homens desfrutam desse relacionamento mais do que mulheres, numa proporção de 7:1. Pode se tratar de um amor platônico, mas nem sempre o é. Em muitos casos, o amante dá claros sinais (ao seu ver) de suas intenções afrodisíacas, mas a pessoa amada não percebe tais dicas. O termo foi cunhado por Joey Tribbiani, da série Friends (Pt: Amigos - Br: Eu Escolhi Esperar) para se referir ao sentimento do personagem Ross Geller pela personagem Raquel Verde. Estimativas indicam que menos de 5% dos friendzoneds conseguem deixar a zona do amigo.

Vantagens: (1) nunca terminar o relacionamento; (2) poder sempre sonhar em como poderia ser diferente (fenômeno "e se?").

Desvantagens: (1) ser um babaca, desperdiçando o tempo que poderia estar investindo em outros relacionamentos, (2) na esperança de ser correspondido pela pessoa amada.

Friendzone: como tudo começou.

Doug Funnie: um dos grandes expoentes da friendzone.

Esquema simples para saber se você está na friendzone.

Outra explicação para a friendzone.

Como entrar na friendzone (via 9gag.com)



3. Poliamor

Po.li.a.mor (muitos amores). sm. = Estado elevado de desapego, em que o indivíduo se permite envolver-se simultaneamente de forma séria com mais de uma pessoa, ao mesmo tempo em que permite que seu(s) parceiro(s) façam o mesmo. O poliamor não se confunde com a bacanal, pois tem como alicerce, como o próprio nome diz, o amor, isto é, é pautado numa relação afetiva não monopolizadora.

Vantagens: (1) poliamar vários poliamores; (2) rachar o preço do combustível.

Desvantagens: (1) manejamento do tempo; (2) não poder colocar seu status com várias pessoas no facebook.

Como eu não sabia o que por nessa merda, resolvi por o
Símbolo do Poliamor.


4. Amizade colorida

A.mi.za.de-co.lo.ri.da. sf. = Relação de carinho, respeito, apoio mútuo e cumplicidade entre duas pessoas, que difere das amizades tradicionais por ser coroada com acesso sexual esporádico a(o) amiguinha(o). Difere do namoro tradicional, por não haver a exigência de exclusividade sexual, nem o compromisso de continuar se relacionando a longo prazo, sendo tais encontros sexuais podendo ser interrompidos a qualquer momento. De certa forma, é o oposto da friendzone.

Vantagens: (1) trocar risadinhas secretas de cumplicidade com a(o) amiga(o) colorida(o), quando estiverem com outros amigos, fazendo piadinhas internas; (2) ter alguém pra beijar quando as luzes se apagarem no ano novo.

Desvantagens: (1) alguém pode querer algo mais e colocar tudo a perder; (2) dificuldade de esconder tal amizade da sociedade opressora.

Confeti: gostoso e colorido.



5. Manda nudes

Man.da-nu.des (do inglês, send nude, for God's sake). imp. = Campanha internacional criada para sensibilizar as pessoas sobre a importância de compartilhar fotos de sua própria nudez. Filosofia neoliberal baseada na obra "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, que defende a ideia de que é imoral restringir a sociedade de ter acesso ao seu corpo. É um relacionamento pautado nas técnicas de persuasão, sendo que sujeitos mais habilidosos são capazes de conseguir negociar nudes com os investidores mais conservadores.

Vantagens: (1) ter nudes; (2) enviar nudes.

Desvantagens: (1) trolls (eles estão em toda a parte); (2) é necessário uma boa conexão com a internet.

Um criativo "manda nudes".

Outro "manda nudes".

Trolls: o grande perigo de quem quer mandar nudes na internet.



¹ Meus agradecimentos à minha amiga cujo nome tem dois Es seguidos, pela inspiração para falar sobre a friendzone, ao John Bowlby, por sua teoria que me fez pensar muito sobre o amor (ah, o amor!), à Cammy, por ter sido o meu amor platônico, ao Joey Tribbiani, por ser tão charmoso, e à todas as minhas amizades coloridas e também a todo mundo que me enviou nudes essa semana, me inspirando para escrever sobre o tema.
² Paschoal, Andressa (2015).

sábado, 15 de agosto de 2015

Culpa da Dilma

Uma postagem feita por culpa da Dilma.¹




Sabem por que o país tá uma merda? Por culpa da Dilma.

Sabem por que está tendo corte de bolsas do Ciência Sem Fronteiras? Por culpa da Dilma.

Sabem por que o aplicativo Uber (que até agora eu não faço a menor ideia do que é) está dando tanta polêmica? Por culpa da Dilma.

Sabem por que houve falta d'água em São Paulo? Por culpa da Dilma.

Sabem por que o Brasil perdeu de 7 a 1 pra Alemanha? Por culpa da Dilma.

Sabem por que a NBC cancelou Hannibal? Por culpa da Dilma.

Sabem por que o Pra Gente Rir está falindo? Por culpa da Dilma.

Sabem por que eu fiquei gripado semana passada? Óbvio, né. Por culpa da Dilma.

Até eu, que nunca simpatizei pela presidente da república, nem agitei bandeira em favor dela, estou sentindo pena pelo tanto que ela vem apanhando nos últimos tempos. Acho muito fácil e confortável culpabilizar a Dilma por tudo de ruim que acontece no país, inclusive as minhas próprias mazelas pessoais. No entanto, também é desonesto. Primeiro porque polariza a discussão sobre política no Brasil, no sentido de que atribui à presidente o adjetivo de "boa" ou de "ruim", como se tudo que ela fizesse fosse acertado ou errado. E não é bem assim que as coisas funcionam. Além do que, ela não governa o país sozinha.

Amanhã o povo vai bater tambor pedindo o impeachment da presidente. Eu não vou. Não porque eu seja favorável a ela. Mas porque eu não tenho a menor convicção de que a saída dela, como muitos acreditam, irá resolver todos os problemas do Brasil. E também porque, à medida em que o índice de popularidade da presidente cai a cada dia e uma espécie de ódio e aversão absoluta a ela cresce, sinto mais vergonha dos argumentos anti PT que sou obrigado a ler diariamente na internet.

Aguardemos pelos próximos capítulos dessa novela...


¹ POOOOQUIIII, hoje é o seu aniversárioooooo! Esse texto é pra você. =P

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Mais uma sobre a redução da maioridade penal

Um texto em homenagem aos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Quem acompanha meu blog deve ter visto que meus dois últimos textos foram sobre o polêmico tema da redução da maioridade penal. Diferente dos últimos textos, em que defendi minha posição e ataquei os argumentos de quem tem uma posição contrária a minha, proponho algo diferente nesse. A seguir, será transcrito o relato de um amigo meu, aqui de Brasília. Esse relato é verídico. E ele é tão bom, que decidi publicá-lo, com autorização desse meu amigo. Ele falará por mim. Um caso real, que demonstrará porque sou contra a redução. Se nem mesmo ele for capaz de mudar a opinião do leitor que é favorável à redução, creio eu que nada mais o fará.

Era domingo. Eu tinha acabado de descer do ônibus, e caminhava rumo a minha casa. A parada ficava longe de casa, de modo que eu teria que caminhar ainda uns 500 metros até chegar ao meu lar. Eu estava com um livro na mão, lendo enquanto caminhava, quando fui abordado por um rapaz, montado numa bicicleta.

- Mano, você sabe me dizer pra que lado fica o Riacho Fundo I?

- Fica pra lá. - respondi, indicando a direção para o rapaz. O jovem deveria ter seus dezesseis, dezessete anos. Ao lado dele estava um garoto ainda mais novo, devendo ter seus dez anos de idade, também montado numa bicicleta. Ambos eram negros.

- Pow, mano, valeuzão ae. - disse ele, estendendo sua mão em minha direção, para me cumprimentar. Hesitei, mas por fim retribuí ao gesto, oferecendo minha mão. - Tu é parça.

De repente, me senti ansioso. Um alerta já se acendera tão logo fui abordado. E esse alerta ficava cada vez maior. Queria tomar logo o rumo de casa, dando fim a aquela inoportuna conversação. No entanto, o jovem prosseguiu sua resenha:

- Você tem horas aí, mano?

A luz de alerta se apagou. E se acendeu a luz de perigo. "Na certa ele quer que eu tire o celular do bolso, para ver se ele é moderno, e se vale a pena anunciar o assalto", pensei comigo. Retirei apenas a ponta do celular para fora do bolso, o suficiente para que eu conseguisse olhar as horas, sem deixá-lo ver o aparelho. Respondi as horas. Para minha surpresa, ele não anunciou assalto algum.

- Valeuzão aí, mano. - disse ele, estendendo a mão novamente, e me cumprimentando mais uma vez, aumentando minha confusão. - Então o Riacho fica pra lá, né? - ele repetiu a pergunta, como se tivesse esquecido a informação que eu lhe dera a pouco.

- É isso mesmo, é só você seguir reto naquela rua, que você chega lá. - respondi.

E então, a suposta simpatia que o jovem mostrara até então se desfez.

- Tu não tá de sacanagem com a minha cara não, né, mano? - suei frio, ante a abrupta mudança no tom de voz, que agora era de ameaça. - Se tu tiver tirando uma com a minha cara e me mandar pro lugar errado, eu dou um tiro na sua cara! - disse ele, vindo para minha direção, ainda em cima da bicicleta.

Acuado, olhei para o menino que estava com ele. O menino tinha os olhos arregalados, observando atentamente a tudo o que acontecia, sem proferir qualquer palavra.

- Não, não tô de sacanagem, não. O Riacho fica pra lá mesmo.

- Ah, então tá de boa. Valeu aí, mano. - disse ele, voltando ao tom de voz anterior, simpático, me cumprimentando pela terceira vez, para minha total perplexidade. - Deixa eu te falar: cê num tem aí um real pra me descolar, pra eu e mais ele comprar algo ali pra gente comer?

Gelei. Se eu dissesse que não, temia uma nova reação explosiva. Se eu dissesse que tinha, para evitar que ele tivesse esse tipo de reação que eu temia, eu seria obrigado a abrir a minha mochila, e depois pegar e abrir a minha carteira na frente dele. E quando ele visse as notas que ali haviam (tinha uma quantia considerável em minha carteira), não sabia o que aconteceria. E para ajudar ainda mais, a rua estava completamente deserta. Não havia uma alma viva para me socorrer naquele momento.

Acabei por abrir a mochila, e tentei remexer na carteira sem tirá-la da mochila. Missão ingrata.

- Tira a porra da carteira da mochila, seu bosta! - gritou o rapaz.

Agora sim eu fiquei preocupado. Obedeci. Tentando controlar o nervosismo diante daquele situação, abri a carteira, procurando uma moeda de um real para dar para ele. Mas antes que eu o fizesse, ele disse, em tom autoritário:

- Passa toda a grana! - disse ele.

Em nenhum momento, ele mostrara uma arma. Através da camiseta branca que ele usava, pude perceber uma protuberância. Mas daí a dizer se aquilo era um revólver ou não, eu não saberia dizer. Mas e uma coisa eu estava certo: eu não estava disposto a pagar para descobrir. Minha vida valia muito mais do que o dinheiro que havia em minha carteira. Entreguei o dinheiro para ele.

- Passa as moedas também, seu bosta! - disse ele. Aquele moleque não estava para brincadeira. Não ia poupar nem os trocadinhos no busão que eu tinha.

- Só libera os meus documentos aí. - consegui dizer, meio tenso, preocupado que ele acabasse levando toda a minha carteira, incluindo meus documentos, me gerando enorme dor de cabeça depois para providenciar segunda via de tudo.

- Fica tranquilo, que eu só quero a grana, não vou levar seus documentos não. - respondeu ele, num novo lampejo de gentileza. - Anda logo, seu bosta!

Eu tinha muita moeda na carteira. Fui estúpido em sair na rua em pleno domingo com tanto dinheiro, sem qualquer necessidade. Entreguei para ele tudo, o que lhe fez ter que utilizar as duas mãos para apanhar as moedas que eu lhe passava. Aquele momento, em que ele ficou com as duas mãos ocupadas, era o momento ideal para eu desferir um soco com toda a minha força bem na fronte do rapaz. Provavelmente, se eu fosse bem sucedido, ele desmaiaria, cairia da bicicleta, ou talvez até mesmo morresse, a depender de como a minha mão atingisse sua cabeça. Em contrapartida, se eu fosse mal sucedido, deixaria o cara puto da vida, e aí eu não sei o que aconteceria a seguir. Fui conservador, e nada fiz.

- Agora some daqui, seu bosta! - disse ele, encerrando nosso amigável e feliz encontro.

Obedeci, com tempo de dar um último olhar para aquele outro menino, o mais novo, de aproximadamente dez anos. Ele continuava com o mesmo olhar atento, observando toda a cena, como se participasse de uma aula prática. Caminhei, até chegar em casa. Aquele assalto aconteceu a menos de 200 metros de uma delegacia de polícia.

Naquele dia, perdi uns 80 reais. Mas nada de ruim aconteceu comigo, o que me encheu de uma profunda paz. De vez em quando, eu ainda me pergunto o que terá acontecido com aqueles dois meninos. O mais velho, estará ainda vivo? Cometendo outros crimes? Estará preso? Mas é o menino mais novo quem me desperta maiores questionamentos. Pensei muito nele depois daquele dia. No papel praticamente nulo que ele desempenhara no assalto. Imaginei inúmeras vezes o que de fato teria acontecido naquele dia. E cheguei a uma conclusão: o mais velho estava ensinando o mais novo como assaltar. Estava mostrando como é que se faz. Como fazer uma pessoa se borrar toda de medo, e fazê-la passar tudo o que ela tem em troca de sua vida. Ele deve ter se sentido o máximo, sendo o professor de um menino mais novo. Por vezes, imaginei ele dizendo: "viu só como se faz, pirralho? O próximo agora é com você, eu só vou ficar no apoio". O que ele esqueceu de falar para o menino mais novo é que uma hora as coisas podem dar errado. E basta uma única vez para a casa cair. Em algum momento, alguém não tão passivo quanto eu, alguém com o pavio mais curto pode acabar reagindo. Uma hora, pode se cometer a besteira de assaltar um suposto civil, que na verdade é um policial à paisana...

Quando penso no garoto mais velho, não sinto raiva. Quando penso no garoto mais novo, sinto profunda pena. Penso que se nada for feito para mudar essa lógica, aquele garoto vai se tornar igual ao mais velho. Aqueles imensos olhos que observaram ao meu assalto, tão inocentes (ainda), se tornarão os olhos sem qualquer piedade, que estarão assaltando algum adulto no futuro. Aquela criança, talvez daqui alguns anos, seja tida como um monstro, um marginal, um vagabundo, ou bandido, alguém que merece ser punido severamente por suas "escolhas" erradas. Mas que escolhas são essas, afinal de contas? Ninguém vai se lembrar do que ele era antes, e de que ninguém zelou pelo seu desenvolvimento num ambiente adequado.

Quem chama esses adolescentes que cometem crime de monstros, até tem lá sua razão. Mas antes de se tornarem monstros, eles também foram inocentes. E se eles se tornaram monstros, foi por nossa própria culpa enquanto sociedade, que permitimos que a desigualdade social se perpetue, levando pessoas a ter que lançar mão desse tipo de ação, para sobreviver. É sempre a mesma coisa: a lei do mais forte. Em alguns momentos, o mais forte pode ser o "mais qualificado", ou o "com mais estudo". Em outros, o mais forte pode ser aquele "que tem o revólver na mão". A redução da maioridade penal não mudará em nada a lógica que permite que meninos tão novos se tornem criminosos. Apenas os punirá por terem "escolhido", muitas das vezes, a única opção que lhes foi dada.




quinta-feira, 2 de julho de 2015

4 Anos Pra Gente Rir

... mas não tenho motivos para comemorar. Não depois do que aconteceu ontem na Câmara dos Deputados. Uma encenação orquestrada e dirigida por Eduardo Cunha e com participação de grande elenco. Menos de 24 horas depois da votação que culminou na rejeição da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, uma nova votação foi conduzida, com uma ínfima mudança no texto, tornando-o mais brando, visando conquistar a meia dúzia de votos que faltara na madrugada anterior, para que a proposta fosse aprovada.

Não bastasse o desfecho de circo dos horrores, também fui obrigado a ouvir os mais absurdos argumentos possíveis. E esse é o tema dessa postagem. No texto anterior, defendi veementemente os motivos pelos quais sou contra a redução da maioridade penal. Nesse texto, mudarei um pouco o foco, respondendo aos principais argumentos que ouvi nas duas últimas noites, dado por deputados que são favoráveis à redução.

1 - Direitos humanos para humanos direitos

Esse argumento está relacionado a uma ideia que combati na postagem anterior. De que todos nós somos dotados de um mecanismo acima de tudo, capaz de decidir se seremos "bons" ou "maus". É um argumento ruim, porque desconsidera a influência do contexto na formação do indivíduo. Eis outras frases burras utilizadas pelos deputados pró redução:

Ninguém vai pegar um estudante universitário no banco da universidade e levar pra cadeia! Ninguém vai pegar o menino que está sentado no banco da igreja e levar pra cadeia!

Argumento que tenta mostrar que a lei só vai afetar quem comete crimes. Verdade, em partes. Mas só metade da história. Vai afetar os pobres, os negros, aqueles que não tiveram oportunidade. A lei tira de foco a possibilidade de oferecer as oportunidades para os menos favorecidos, que lhes permitiriam trilhar outro caminho, que não o do crime.

A lei tem que proteger o cidadão de bem e punir o bandido.

Tola dicotomização, que sugere que quem serve ao capital é cidadão de bem, e quem não o faz, é bandido. Também ignora o fato de que o Estado foi bandido primeiro, ao descumprir artigos da Constituição, que asseguram direitos fundamentais à criança e ao adolescente.

Pobreza não é salvo-conduto pra cometer homicídio, estupro e crimes bárbaros.

Ninguém disse que é. Mas interessante que a pobreza não é combatida, nem considerada em momento algum.

2 - O PT está há 13 anos no poder e não fez nada pelas crianças e adolescentes que hoje são uma parcela representativa do sistema carcerário brasileiro

Minha crítica a este argumento é simples: a inoperância ou inefetividade do PT não é justificativa razoável para punir crianças e adolescentes. Se o PT não fez nada, que se criem medidas para que algo seja feito por essa população. Por que elas devem ser punidas pela omissão petista? Não seria o caso de alguém fazer algo por eles então?


3 - A redução é um passo na luta contra a impunidade

Essa frase deixa claro que a luta pela redução é movida pelo desejo de justiça/vingança, e não por recuperação daquele que está em dívida com a lei. O objetivo não é ressocializar, reeducar (termo incorreto, pois "reeducação" pressupõe educar novamente), mas apenas tornar recluso, punir tirando a liberdade, dar uma falsa sensação de segurança. É uma política higienista, no sentido de que é uma tentativa de limpar a sujeira produzida pela própria sociedade. Que tal ser higienista de outra forma, impedindo a produção dessa sujeira? Me parece mais coerente e mais humano.

4 - A vontade da maioria

Como legisladores, temos que estar atentos para ouvir a voz das ruas, e fazer a vontade do povo.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que os deputados que invocaram constantemente esse argumento, não o invocaram em outras ocasiões, quando votaram em outras pautas com uma opinião oposta ao da vontade popular. Argumentos tais como "a voz do povo é a voz de Deus" valem quando a questão é redução da maioridade penal, mas são deixados de lado quando o meu candidato à presidência não ganha. Como diria um amigo meu: "aí eu peço impeachment". Numa discussão que tive ainda hoje, meu interlocutor invocou políticos considerados ditadores, para ironizar o fato de eu desconsiderar a vontade popular. Nesse caso, eu devo lembrar que também foi vontade popular a crucificação de Cristo, bem como o Nazismo de Hitler foi bem recebido pela população alemã. Será que a vontade da maioria deve sempre prevalecer mesmo?

Conclusão

Por fim, devo dizer que me entristece profundamente ver a bancada cristã votando à favor a essa pauta. Me parece totalmente incoerente com aquilo que afirmam acreditar. Pior que eles, somente a bancada militar, com suas falas violentas, imbuídas de expertise de quem é da área de segurança pública, alegando que a redução é sim a solução para o país. Óbvio que eles sequer percebem que, como já disse inúmeras vezes, o real problema não é de segurança pública - embora o sintoma o seja -, mas educacional e estrutural.


quinta-feira, 25 de junho de 2015

Redução da Maioridade Penal

Postagem número 100.¹

"Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado"
Betinho                                        

A convenção social diz que devemos ser tolerantes e respeitar as opiniões alheias, mesmo que contrárias às nossas. Mas eu confesso que não consigo respeitar muito a opinião de quem é a favor da redução da maioridade penal, porque considero esta uma opinião ignorante e extremamente egoísta.

Recentemente, tem-se discutido no Congresso Nacional a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. E as discussões do plenário têm se estendido também para outros lugres, como entre amigos e familiares, no meio acadêmico e até mesmo nas redes sociais. Pra começar, eu tenho uma opinião bem radical sobre o assunto: eu não só sou totalmente contra a redução da maioridade penal, como também acho que este é um assunto tão impensável que nem deveria ser tema de discussão na atualidade. Fora o retrocesso que, ao meu ver, acontecerá com a aprovação de tal proposta, os argumentos em favor de tal redução são pobres, reducionistas e tendenciosos. Meu objetivo nesse texto é fazer uma reflexão sobre o assunto, explicando alguns dos motivos pelos quais eu sou contra a redução da maioridade penal.

Primeiramente, o argumento basal que permite dizer se devemos, ou não, condenar as pessoas por suas ações é a nossa crença de que elas têm poder de decidir aquilo que fazem. Essa consideração de que temos um livre arbítrio é fundamental para justificar a atribuição de culpa às pessoas pelas escolhas ditas erradas que elas tomam ao longo da vida. Mesmo que o livre arbítrio exista - veja bem, não estou sequer assumindo que ele existe, estou apenas considerando tal possibilidade -, duvido muito que ele seja esse livre arbítrio romântico idealizado pelas pessoas, em geral: um livre arbítrio que está acima de qualquer coisa, do tipo que assume que se a pessoa realmente tiver uma postura moral correta, nada irá dissuadi-la de se comportar moralmente. Podem colocar uma faca em sua garganta, que mesmo assim ela continuará seguindo os seus princípios. Pode vir até a passar fome, mas jamais agirá contra a lei. Tudo pode estar errado em sua vida, mas ainda se comportará segundo aquilo que aprendeu ser o certo.

Tenho a sensação de que as pessoas que apoiam a redução da maioridade penal se consideram cidadãos exemplares, modelos da moral e dos bons costumes vigentes, pagadores de seus impostos, trabalhadores e cumpridores da lei. E, em contrapartida, os marginais, segundo o pensamento de tais puritanos, são apenas pessoas que decidiram - conscientemente e sem nenhuma pressão do ambiente para isso - seguir o caminho mais "fácil": o caminho do crime. Tal pensamento puritano me enche de nojo. Desconsiderar a influência que o meio social exerce sobre o indivíduo é de uma estupidez absurda. "Ah, mas eu conheço um cara que também veio de família simples, de um lugar adverso, e nem por isso virou bandido. Esse sim é um exemplo de alguém que venceu na vida". Tá aí outra coisa que me enoja: utilizar casos que são exceções para refutar a regra geral. Vou dar um exemplo: imagine que um menino tenha uma família desestruturada, uma mãe com muitos outros filhos, um pai ausente, que ainda por cima é alcoólatra, passando necessidade em casa. Você realmente acredita que existe um livre arbítrio que transcende a todas as adversidades enfrentadas por essa criança? Você acha que a influência positiva da professora na escola - se ele frequentar uma - será o suficiente para que essa criança, que até fome passa, trace um caminho melhor para sua vida? Eu diria que isso é pouco provável. Mas acho que os defensores da redução não conseguem enxergar isso. Suponha que na comunidade, com o tempo, essa criança descubra que existem meios de ascender socialmente - afinal, não é isso que o sistema capitalista prega? -. Porém, esses meios são ilícitos. Ela encontra em algum indivíduo dentro de sua comunidade uma figura bem-sucedida, respeitada, que acaba se tornando um modelo para ela. Pode não ser o modelo ideal, mas é o único modelo que ela tem. Então, por que essa criança não deveria segui-lo? Eu sinceramente não vejo justificativas para isso.

Caro leitor, cara leitora, permita-me recorrer a mais uma alegoria: suponha que, numa sociedade hipotética, a moeda vigente sejam balas. Isso mesmo, balas de iogurte, daquelas que você compra em qualquer padaria. Suponha que essas balas sejam a moeda de troca dessa sociedade, que determinará quem tem mais poder de compra, e também determinará quem terá que suar a camisa para sobreviver. Suponha agora que nessa mesma sociedade, existam 30 pessoas e exatamente 30 balas. No entanto, cinco dessas 30 pessoas têm em suas mãos, juntas, um total de 20 balas. É uma questão de matemática básica: as outras 25 pessoas disputarão as 10 balas restantes. E é óbvio que não sobrará recursos para todo mundo. Agora, aplique a mesma lógica dessa sociedade hipotética à nossa sociedade atual: alguma semelhança?

A fantasia do capitalismo é que, diferente do feudalismo, em que as relações de classe eram estáticas, nele as relações são dinâmicas: no maravilhoso capitalismo é plenamente possível nascer pobre e ascender socialmente ao longo da vida. Mas, como diria o psicólogo Luis Cláudio Figueiredo, da mesma forma que você pode ascender no capitalismo, também pode chegar ao fundo do poço, enquanto a sociedade segue em frente, totalmente indiferente à sua desgraça. Mas o que se vende ainda do capitalismo é a fantasia do pote de ouro do outro lado do arco-íris. A minha questão é: por que somente o indivíduo que utiliza de intimidação e ameaça de morte para obter recursos é considerado criminoso, bandido, vagabundo, sem-vergonha, mas o fato de pessoas - com um pouco mais de sorte - acumularem capital não é algo considerado imoral em nossa sociedade? Ao prosperar financeiramente, não estamos de alguma forma "roubando" de alguém também?

Intimamente atrelada à ideia de livre arbítrio, temos a ideia de meritocracia, extremamente valorizada no capitalismo. Sem qualquer enrolação, devo dizer que considero a meritocracia tão real quanto o coelhinho da páscoa ou o papai noel. A meritocracia, pra mim, é uma triste e doce ilusão! Triste para os mais pobres, que realmente podem chegar a acreditar que se não têm sucesso na vida, é porque não se esforçaram o suficiente. E doce para os mais ricos (ou, para os menos pobres), por acharem que terem algum patrimônio é porque conquistaram isso pelos seus próprios méritos, e essa doce crença de que a sociedade é movida pelo mérito pode impedi-los de ajudar aqueles que "não fizeram por merecer". Caro leitor, se você realmente acredita que a sociedade premia aqueles que mais merecem pelos seus esforços por chegarem onde chegaram, sinto dizer que te enganaram bonito. Gosto da analogia feita pelo professor Michael Sandel²: a meritocracia poderia ser comparada a uma corrida de carros, e uma corrida justa seria aquela em que todos os pilotos tivessem carros com a mesma capacidade de desempenho e onde todos os corredores largassem lado a lado. Nesse caso, o piloto que vencesse, de fato, seria merecedor de sua vitória. Mas o que acontece na verdade é que, já no ponto de partida da corrida, alguns largam bem à frente dos demais. Além disso, alguns correm de Ferrari, enquanto outros, correm com um pobre Fusquinha. O mesmo se aplica para a corrida com a vida, onde uns dão a sorte de nascer num lar mais estruturado, com pais que têm condições de dar boas roupas, boa alimentação, matricular os filhos em bons cursos de línguas, em bons colégios. Enquanto outros mal conseguem garantir a subsistência de sua prole. Aí, décadas depois, quando o filhinho de papai se forma na faculdade e começa a ganhar dinheiro, acha que é merecedor de tal prêmio. Realmente, há justiça na corrida da vida? A meritocracia se faz presente nela?

Se o livre arbítrio não é assim tão grande, porque existe uma forte influência do meio, que em grande medida aponta os limites e possibilidades de ação de cada indivíduo, e se a meritocracia não passa de um engodo, então como justificar a redução da maioridade penal? Aqui finalmente posso justificar meu radicalismo mencionado no segundo parágrafo, ao dizer que acho que a redução da maioridade penal sequer deveria ser uma pauta na agenda política atual. Provavelmente, alguns dirão que o ECA não funciona. Aí eu devo rebater esse argumento. O ECA, assim como o SUS, é lindo. No papel. Se ambos não funcionam, não é porque a lei é ruim. Mas é porque a lei não é efetivamente aplicada. Então, ao invés de debater a redução da maioridade penal, por que não discutimos os motivos pelos quais o ECA, que foi promulgado há quase 25 anos³, até hoje não funciona? Por que se gasta tanto tempo e energia para discutir os "crimes" cometidos por menores contra a sociedade, mas não se gasta um pingo dessa energia para discutir os crimes cometidos pelo Estado contra esses mesmos menores? Por que a omissão do Estado é irrisória? Por que só as contravenções cometidas pelo menor são lembradas, mas os direitos assegurados - e não cumpridos - na letra da lei do ECA, nunca são mencionados? Por que essa memória tão seletiva, para lembrar apenas dos eventos que lhes convém, em prol da redução da maioridade penal?

Em nenhum momento, estou dizendo que não temos um problema social de criminalidade no Brasil, bem como o conhecido fato de que adolescentes "assumem a bronca" de crimes cometidos por maiores de idade, porque, como sabemos, "não dá nada pra di menor". Não estou desconsiderando o medo - que, às vezes, beira ao pânico - vivenciado por cidadãos e cidadãs diariamente, sobretudo nas grandes cidades, onde as diferenças sociais e, por conseguinte, a violência urbana, são mais nítidas. Só estou dizendo que reduzir a maioridade penal é covardia contra crianças e adolescentes que, em última análise, são primeiramente vítimas. E, definitivamente, encher ainda mais os presídios, não é a solução.

Criei uma analogia há alguns anos, para expressar o que o Estado faz com os problemas existentes. Apelidei essa analogia de "Teoria da Goteira". Imagine que tem uma goteira na sua casa, mas que, ao invés de subir no telhado para trocar as telhas e acabar com as goteiras, você opta por aparar a chuva que cai dentro de casa com baldes. As goteiras vão aumentando em quantidade, bem como o número de baldes para apará-las. Logo, sua casa está igual a casa da Dona Florinda. E eu te pergunto: você resolveu o problema? Não, né. Podemos dizer que você arrumou uma solução paliativa, mas não foi até a raiz do problema, eliminando-o. Reduzir a maioridade penal, seria igual aparar as goteiras das chuvas com baldes - na verdade, acredito que seria ainda pior, pois seria uma tentativa frustradas de melhorar a situação, acabaria até piorando. Pra resolver o problema de verdade, é preciso subir no telhado, procurar as causas da goteira e intervir sobre as causas. E não sobre os efeitos. A criminalidade não é a causa do problema. A criminalidade é o efeito. Querem combater algo de verdade? Então não mexam na maioridade penal. Encontrem a causa do problema. E a combatam.

¹ Agradeço ao meu amigo andarilho, pelos longos anos de amizade, e pelas muitas vezes que me auxiliou com suas críticas, comentários e incentivos. Em especial, por ter relido esse texto antes de sua publicação, contribuindo com sua sempre sagaz opinião.

² Recomendo muito a série de palestras desse professor, disponível legendada no Youtube. Toda a série pode ser encontrada a partir do link do primeiro vídeo da coletânea: https://www.youtube.com/watch?v=EC5rEhbH-fI

³ Estamos às portas de comemorar os 25 anos da lei, correndo o risco de ter uma triste notícia e retrocesso, nesse jubileu de prata. A Lei 8.069/1990 pode ser lida na íntegra aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm

sábado, 13 de junho de 2015

Moda Probabilística

Um novo conceito em estatística.

Em estatística, quando dizemos que a moda de um determinado conjunto de cores de camiseta é a cor azul, estamos simplesmente dizendo que aquele é o valor que mais se repete naquele conjunto. Sendo assim, a moda envolve um fato conhecido sobre um conjunto de dados, uma verdade inquestionável, e não uma mera especulação sobre aquilo que acreditamos ser a verdade. Trata-se, portanto, de um resumo de um conjunto de informações. É uma moda estatística.

No entanto, a palavra "moda" também é utilizada por profissionais da área homônima, para designar qual será a tendência de um determinado período. Neste caso, não estamos falando sobre um fato empírico, observável, que já ocorreu e que é possível ser julgado por duas ou mais pessoas, para posterior consenso dos observadores. Trata-se, portanto, de uma moda probabilística.

A moda estatística também é uma tendência. No caso, uma medida de tendência central. Uma síntese. Talvez não a melhor, nem a mais correta. Mas uma tentativa de resumir o que aconteceu. Já a moda probabilística é um pouco mais obscura. Me parece uma previsão baseada em nada, defendida por um suposto expert no assunto, e sustentada sem qualquer evidência real.

Vamos pensar um pouco mais sobre a moda probabilística. Como é que alguém pode dizer que "a roupa amarela vai vir com tudo na próxima estação, pois vai ser a moda, a tendência do verão"? Quais são os dados que predizem este acontecimento. Levanto três hipóteses a seguir, que visam explicar o exemplo dado neste parágrafo:

1ª Por algum motivo, a fábrica de roupas não tiveram acesso a nenhuma outra cor de tecido para produzir sua mercadoria. Aqui não importa muito se pegou fogo nos demais tecidos, se ninguém quis vender tecido de outras cores, ou se um caminhão de tinta amarela caiu sobre todos os tecidos. O que importa é que só tem amarelo, e o motivo pelo qual se prevê que a cor amarela será a mais usada é que não terão outras cores à venda nas vitrines;

2ª Um desejo coletivo levou a maior parte dos consumidores a exigir a cor amarela para a próxima estação, e a fabricação em massa de material nessa cor reflete apenas a vontade popular. Segundo esta hipótese, quando um especialista da moda diz que algo vai ser a tendência da próxima estação, ele está apenas baseando-se em dados reais que apontam para uma conclusão não empírica, mas totalmente lógica;

3ª Esta é a hipótese que mais me agrada, simplesmente porque é a que mais faz sentido pra mim (e, ao mesmo tempo, a que menos faz sentido). Neste caso, a explicação é a seguinte: os experts arbitrariamente decidem o que querem que esteja na moda futuramente, e independentemente de dados prévios ou da vontade futura das pessoas, plantam nos meios de divulgação em massa a semente de que algo estará na moda. O que eles fazem é sugestionar as pessoas a comprarem algo, se quiserem estarem na moda (ou, até mesmo, na média, e não ser um outlier).

Termino esse texto com um resumo: a moda probabilística é um conceito probabilístico que prevê a ocorrência de eventos futuros, sendo que o fator explicativo dessa previsão é a própria sugestionabilidade gerada pela previsão da moda probabilística.

Fim.

sábado, 23 de maio de 2015

Velhice

Um texto em homenagem aos amiguinhos Boretti, Kola e Guaianases, que estão me alcançando na marca dos 24 anos neste mês. Esta última (Guaianases) fica mais idosa já hoje.

Ontem eu estava sentado num banco da faculdade, aguardando duas pessoas que tinham ido ao banheiro, quando um rapaz alto e forte - provavelmente um estudante - se aproximou de mim e me cumprimentou:

- E aí mano, de boa?

- T-tudo bem. - disse eu, confuso por aquela inesperada abordagem. Ansiando que ele se afastasse tão rapidamente como se aproximara. Queria ficar só.

- Cara, na boa, cê não tem uma "seda" pra me arrumar aí, não?

Respondi que não tinha e ainda pedi desculpas por isso¹. O rapaz se afastou depois, e eu fiquei pensando que eu devo estar com uma aparência muito velha pro cara pensar que eu me acabo na maconha. Afinal, tem as irmãs (freiras) na faculdade, e duvido muito que ele teria pedido uma seda pra elas. Se veio até mim, é porque desconfiou que eu curtia um cigarrinho do capeta.

Aí eu comecei a pensar... eu sei que o tempo está passando, e que ele não está sendo nada generoso comigo. Mas também não imaginei que estivesse tão destruído assim. E comecei a lembrar de outras coisas que acontecem no dia-a-dia que fazem com que eu me sinta velho. Como quando a molecada acaba jogando a bola de futebol pra fora do condomínio bem na hora que eu estou passando pela calçada, e ao devolvê-la, ouço um "valeu, tio!".

Você percebe que está ficando velho quando come uma fritura e sente queimação logo em seguida, e fica passando mal. Ou quando está viajando de ônibus e começa a sentir dor nos pés, por causa de má circulação. Ou então quando revê um parente mais jovem - em geral, o filho de algum primo - e diz, abismado: "nossa, mas como que você cresceu!". E outras expressões passam a fazer parte do seu linguajar cotidiano, como "na minha época", "eu sou do tempo" e blá blá blá.

Ficar mais velho é fazer alguns exercícios nem tão pesados assim, mas amanhecer quebrado no dia seguinte. E também no outro, no outro e no outro. Uns quatro dias até se recuperar da maratona de atividades físicas. Ficar mais velho também é comer bastante e ver toda a gordura se concentrar na barriga, tal como no sistema capitalista, em que os recursos estão concentrados para uns poucos, que têm muito, e a grande maioria tem pouco.

Ficar mais velho é começar a fazer cálculos matemáticos, de quanto tempo já passou desde que o evento X aconteceu, ou então começar a especular se 24 anos correspondem a 1/4 da minha vida, 1/3, ou, ainda mais assustador, 1/2?

Ficar mais velho é perceber que você nem está tão velho assim, afinal de contas, ainda tem muita coisa pra viver. Em compensação, te faz pensar que sua amiga da mesma idade e que ainda está solteira realmente vai ficar pra titia. A menos que você (eu) arrume um véio careca e desdentado pra cuidar dela².


¹ Pensando melhor, eu deveria ter dito que havia acabado.

² Esse texto está uma bosta, mas não estou nem aí, pois minha vida também está.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Desabafo

Brasília, 04 de maio de 2015.

Caros fanáticos, seguidores do mundialmente famigerado blog Pra Gente Rir,

Venho por meio desta postagem fazer um desabafo. Primeiro, todos devem ter percebido que falhei na publicação de um texto na segunda quinzena de abril. De fato, tinha intenções de realizar uma publicação no final do mês passado, mas devido a problemas porque eu não quis mesmo, vão achar ruim? acabei não postando nada.

A correria está grande aqui na capital nacional. Mesmo com alguns esboços de publicações já prontas, não encontro tempo para finalizá-las, dar um acabamento final, para então publicar. A faculdade vem sugando as minhas energias. Como todos sabem, sou estudante de humanas, e as manifestações aqui não param nenhum dia. Também estou vendendo minhas artes dentro do Campus (pulseirinhas de miçangas, que aprendemos a fazer no curso. Quem quiser comprar, é só entrar em contato comigo). Além disso, também estou me introduzindo agora no comércio de produtos naturais para fins recreativos leia-se marihuana, mano, então não tenho tempo nem de estudar direito.

Gente, mas acredito que tudo isso é só uma fase. Em breve volto com tudo com postagens cada vez mais interessantes. E em breve, voltaremos com nossas incríveis promoções, onde você além de ler textos maravilhosos escritos por mim, ainda pode faturar um super prêmio aqui no Pra Gente Rir.

Portanto, eu imploro, não abandone esse blog, senão eu entro em depressão e me mato. Continue nos acompanhando, aproveite a oportunidade para reler alguns textos antigos, como esse daqui, esse aqui ou até mesmo esse aqui.

Uma ótima semana a todos e até logo!

Kily González
Presidente-Executivo
Pra Gente Rir

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Estereótipo, Preconceito e Discriminação

Uma postagem factuada em baseados reais.

Um dia desses, eu ouvi a seguinte pérola: “Como assim você não é ateu?”.

A pérola em questão foi proferida por uma menina do meu curso, que se mostrava inconformada ante a descoberta de que eu, Kily, não sou ateu. No momento do ocorrido, eu também fiquei surpreso – no meu caso, surpreso pela surpresa dela. Fiquei tão surpreso que só depois que voltei pra casa que fui refletir sobre o ocorrido. Afinal de contas, quais elementos embasaram a teoria da jovem, para acreditar que eu de fato era ateu? Tá certo que eu não saio gritando aos quatro ventos qual é a minha crença. Mas também não ofereço nenhuma evidência em contrário, que leve alguém a crer que sou um descrente.

Essa garota fez uso de um estereótipo para me classificar como ateu. Os estereótipos nada mais são do que generalizações que fazemos sobre pessoas, grupos sociais ou situações, com base em esquemas que temos armazenados em nossa mente, e que facilitam a compreensão do mundo à nossa volta. No entanto, apesar de útil para guiar nossas ações no dia-a-dia, os estereótipos também possuem seus problemas. A maior parte dos julgamentos estereotipados que fazemos tem como alicerce alguma crença cultural, que não necessariamente se sustenta na realidade. Por exemplo, quando afirmamos que todo japonês necessariamente é inteligente, não estamos considerando o caso do Sr. Shiguefuzi, um nissei que tem raciocínio lógico de uma toupeira e extrema dificuldade na resolução de problemas gerais. Outro exemplo é o de quando julgamos que todo baiano é preguiçoso, até nos darmos conta de que a organização social da Bahia também gira em torno do trabalho (executado, em sua maioria, pasmem, por baianos). Ou ainda, quando acreditamos que todo corintiano é bandido... bom, aí eu devo reconhecer que esse é um estereótipo verdadeiro.

Mas voltando a história de eu ser (ou não ser...) ateu (... eis a questão), a menina continuava olhando incrédula para mim, depois de descobrir que eu não era ateu. Ela insistiu, com semblante horrorizado:

- Não, não, isso não é possível! Você tem que ser ateu! Olha só pra você!

O “tem que” foi dito com tanta ênfase que poderia ser substituído por “precisa” ou por “deve”, sem comprometimento do sentido da frase. “Você PRECISA ser ateu”. Segui o comando dela e tentei olhar para mim mesmo. Como ali não havia espelho, olhei para baixo, contemplando as roupas que cobriam meu castigado corpo: uma camiseta preta, uma calça jeans surrada e um tênis igualmente (e cumulativamente) preto e surrado. Fora a minha indumentária, também compõem o meu visual o meu cabelo comprido e a minha barba desleixada de estudante de humanas. Entretanto, a meu ver, nenhum desses elementos possui a qualidade de ateísmo intrínseca a eles.

- Sinto muito te desapontar, mas eu não sou ateu. – expliquei, do modo mais polido possível, realmente achando que eu devia um pedido de desculpas para ela, e temendo nova represália moral ou até mesmo uma agressão física.

- Ah, você deve ter cometido algum engano, Kily. Tem certeza que não é ateu? Absoluta? – confirmei com um movimento de cabeça. – Eu tinha certeza que você era ateu, roqueiro e satanista.

Decidi ficar calado e não comentar o contrassenso que era tal classificação, incluindo ateu e satanista ao mesmo tempo. Ao invés disso, brinquei:

- Na verdade eu sou judeu, pagodeiro e nazista.

Minha piada não surtiu o efeito desejado. A menina foi embora. Fim.

Apesar de eu não ser ateu, roqueiro, nem satanista, devo reconhecer que eu preencho em alguma medida aos estereótipos que as pessoas têm sobre as duas últimas figuras. Com meus cabelos e barba compridos, e sempre com uma camiseta preta, acabo passando por alguém que curte um rock ‘n roll. A única coisa que não repararam ainda é que minhas camisetas pretas são lisas, isto é, sem estampa. Nunca apareci em lugar algum com uma camiseta de banda, tipo Slipknot, Guns ‘n Roses ou algo do gênero. Mesmo assim, certa vez, um cara que estudava comigo se aproximou de mim e falou:

- Cara, você se parece muito com o Robson¹.

- Desculpe, mas não conheço esse elemento. – respondi.

- Cara, o Robson, guitarrista dos Robinstones.

- Continuo sem saber quem é. Não conheço tal banda também.

- Ô loco! Como não? Que instrumento você toca? – envergonhado, assumi que não sabia tocar nenhum. – Ah, fala sério, qual você toca? – e eu insisti que não sabia tocar sequer berimbau, que só tem uma corda, ou mesmo uma gaita caipira, que é praticamente só assoprar que o som já sai em forma de música.

A ideia aqui não é criticar os estereótipos das outras pessoas, mas propor uma reflexão sobre ele. Vou contar um episódio que aconteceu comigo mesmo há uns 3 anos, e mostra bem como é sério esse negócio do estereótipo. Eu estava voltando da faculdade, quando desci do ônibus. Já era bem tarde, a rua estava deserta, e eu tinha que caminhar cerca de 300 metros da parada de ônibus até o prédio onde eu morava. Enquanto caminhava, vi uma pessoa lá longe, também caminhando na direção contrária, isto é, em minha direção.

Na hora gelei. Meu coração acelerou. Já comecei a pensar no pior. Comecei a orar a Deus, pedindo pra ele perdoar todos os meus pecados e dizendo que se ele me livrasse daquele problema dessa vez eu jurava que eu realmente pararia de vestir lingerie feminina. E enquanto eu andava, torcia para que a pessoa que vinha na outra direção estivesse de camisa azul. Isso porque onde eu moro, camisa azul é uniforme de motoristas e cobradores de ônibus. E é aqui que está o meu primeiro estereótipo: quem trabalha é cidadão de bem, não comete crimes e não causa problemas para a sociedade.

Alguns segundos depois, para meu desespero, percebi que o sujeito que vinha em minha direção, além de não estar de azul, estava de chinelo, com um boné aba reta, uma bermuda de mano, e de quebra possuía a tez negra. Naquele momento, tive certeza de que iria morrer. Aqui estão outros estereótipos (é um conjunto deles, mesclados): uma pessoa que está na rua depois das 11 da noite e não está com mochila nas costas, nem com uniforme de cobrador, provavelmente não está fazendo coisa boa na rua. Se estiver vestido igual mano então, na certa é bandido. E se for negro, meu amigo, pode se preparar pra abotoar o paletó. Perceba que neste caso o estereótipo foi um pouco além e se tornou um claro preconceito, pois além das generalizações sem evidências, envolve atitudes negativas a respeito de determinadas características. Se eu pudesse resumir a Escala Subjetiva de Medo do Kily, ela ficaria mais ou menos assim:

- a roupa da pessoa é azul: é cobrador ou motorista de ônibus. Logo, nenhum medo;

- a roupa da pessoa não é azul: sinal de possível perigo. Logo, sinto medo;

- a pessoa está com boné aba reta e bermuda de mano: assalto na certa. Logo, sinto pavor;

- além do item anterior, a pessoa é negra: latrocínio garantido. Logo, me borro todo.

O desfecho da história é óbvio, dado que três anos depois, estou aqui postando esse texto: não fui assaltado, tampouco estuprado, e nada aconteceu. Apenas passei ao lado do rapaz negro, que nenhuma atenção deu para mim, e cheguei são e salvo em casa. E isso fez com que eu me sentisse muito mal, pois eu me percebi um tremendo preconceituoso naquele dia.

O terceiro elemento que faz parceria com o estereótipo e com o preconceito é a discriminação. A discriminação, diferente do estereótipo e do preconceito, é uma ação propriamente dita, muitas vezes embasada nos outros dois. A questão é que o estereótipo e o preconceito são pensamentos, ideias, valores, que não necessariamente são externalizados. Já a discriminação necessariamente é expressa através de comportamentos. E apesar de ser a mais explícita das três – no sentido de que acontece de modo que todos possam observar – ela deve ser também a mais velada de todas. Afinal, os estereótipos e até mesmo preconceitos vivem sendo expressos através de piadas. Mas a discriminação é um assunto tabu, pois ninguém quer ser chamado de racista, de misógino ou de homofóbico.

A discriminação pode ocorrer de formas sutis, como na hora de escolher sentar ao lado de uma pessoa no ônibus, só para não ter que sentar ao lado de outra, que, no caso, possui alguma característica “discriminável”. Suponhamos que nesse exemplo, a pessoa a quem evitei seja um homem com a barba por fazer, o cabelo despenteado e as roupas surradas. Se eu sinto nojo dele, porque julgo que a aparência dele denota pobreza e sujeira, a minha ação de afastamento foi preconceituosa. Outra forma um pouco menos sutil é a pessoa que diz: “não, eu não sou uma pessoa preconceituosa. Eu até tenho um amigo gay”, como se estivesse fazendo um favor para o gay (que ao se assumir publicamente como gay, perde sua dimensão humana, deixa de existir enquanto pessoa, e passa a ser somente um gay), ao ser amigo dele. Mas a discriminação pode ser ainda mais explícita, como infelizmente ainda acontece na Europa, onde a torcida chama os jogadores brasileiros de macacos e ainda atiram banana dentro do campo em alusão ao símio que aprecia essa iguaria.

Esse texto procurou explorar de modo bem humorado, o tripé estereótipo-preconceito-discriminação. Ao meu ver, ter estereótipos ou preconceitos não são o grande problema. O problema é tê-los e não saber/assumir que tem. É negá-los. Uma pesquisa feita pela Folha de São Paulo em 1995 investigou a temática do racismo. Na pesquisa, 80% dos respondentes afirmaram que acreditavam que ainda existia racismo no Brasil. Porém, quando perguntados se já haviam discriminado alguém, a maioria dos pesquisados responderam que não. O que depreende-se disso? Que o Brasil é um país racista, mas sem racistas. E essa negação pode levar a discriminação, o último e mais perigoso estágio desse tripé. Algumas pessoas podem alegar que não sabiam que eram preconceituosas. Sinto dizer, mas o desconhecimento não muda os efeitos da discriminação sobre suas vítimas. O primeiro passo rumo a qualquer mudança é reconhecer que o problema existe, e que ao contrário do que se pensa, ele é muito sério, e afeta toda a nossa sociedade.

¹ Robson aqui representa o nome de um músico. Como não me recordo qual músico o cidadão se referia quando me disse isso, preferi colocar um nome fictício. O mesmo se sucede com o nome da banda citado na sequência do texto. Vale ressaltar que, apesar da minha ignorância no tema, ao que tudo indica, se tratava de um nome expressivo no cenário do rock mundial, o que tornava a meu desconhecimento quase uma blasfêmia.