Segunda parte de minha narrativa. Confira a primeira parte aqui.
Nota: Eu sou preconceituoso. Como todo mundo, tenho meus preconceitos. O problema não é ter preconceitos, mas sim ser incapaz de admití-los. Um de meus preconceitos é com a polícia, em geral. Embora a minha crítica seja com a corporação policial, a organização em si, muitas vezes eu penso através de metonímias, aplicando o mesmo pensamento que tenho em relação ao todo às partes. No entanto, quero deixar isso bem claro, pois nem todo policial é arrogante, prepotente ou abusivo. Só que automaticamente, eu os julgo assim. Infelizmente - para mim, para a sociedade e para todos os policiais -, essas características acabam sendo apenas um sintoma de todo um sistema doente e corrompido. A culpa disso não é dos policiais. Eles também são vítimas.
Nota: Eu sou preconceituoso. Como todo mundo, tenho meus preconceitos. O problema não é ter preconceitos, mas sim ser incapaz de admití-los. Um de meus preconceitos é com a polícia, em geral. Embora a minha crítica seja com a corporação policial, a organização em si, muitas vezes eu penso através de metonímias, aplicando o mesmo pensamento que tenho em relação ao todo às partes. No entanto, quero deixar isso bem claro, pois nem todo policial é arrogante, prepotente ou abusivo. Só que automaticamente, eu os julgo assim. Infelizmente - para mim, para a sociedade e para todos os policiais -, essas características acabam sendo apenas um sintoma de todo um sistema doente e corrompido. A culpa disso não é dos policiais. Eles também são vítimas.
CAPÍTULO
3 – OS CORPOS DÓCEIS
Um exemplo de um corpo dócil.
- DEITA NO CHÃO! DEITA NO
CHÃO!
Mas
eu não estou com sono!
Joguei-me ao solo, sendo tão
competente em obedecer ao comando do policial que parecia um transeunte pulando
na frente do carro do CJ no GTA San
Andreas – desculpem-me a nova analogia ao jogo, mas é que são muitas as
semelhanças com a vida real. Para entenderem melhor, clique aqui. Na queda, eu consegui me ferir, não de forma letal, mas ralando o
ombro direito e posteriormente ficando com um hematoma em formato circular,
cuja circunferência tinha o tamanho próximo ao da de uma bola de tênis. De
quadra.
Deita no chão! Deita no chão!
Mesmo sem ver o policial, eu
tinha consciência de que a arma ainda era apontada para mim. Senti o segundo
policial agachando-se perto de mim, segurando o meu braço direito e levando-o
até as costas, com tanto carinho que nem minha mãe faria igual. Creio que o
policial estava curioso para ver se eu era flexível, ele queria ver se era
capaz de me fazer tocar minha própria nuca com meu dedo médio, estando meu
cotovelo atrás das costas. Correção: ele sabia que conseguiria isso, o que ele
queria mesmo era verificar se teria que me causar fraturas ou não para
conseguí-lo.
Ilustração de como é feita a imobilização policial. Acho ela importante em determinados contextos.
Mas não oferecemos resistência, não estávamos armados e não fomos pegos em flagrante delito para recebermos tal tratamento.
Então voltamos ao início do
texto. Se era objetivo do policial causar-me dor, ele estava sendo bem
sucedido. Agora, se era seu objetivo levar-me a implorar clemência, neste aspecto
ele não alcançou sucesso (ele também não conseguiu me fazer perder os controles
esfincterianos). Eu tenho um enorme nariz. Com uma capacidade descomunal de
sugar oxigênio. E naquele momento, ele trabalhava afoito na busca por mais ar,
na tentativa de encontrar suas propriedades analgésicas e reduzir o desconforto
causado pelo policial nas minhas costas. Se alguém olhasse para a estranha
figura que eu fazia naquele momento, se lembraria de um peixe pulando no chão,
de modo tolo, tentando sobreviver.
O que mais me irrita em
lembrar daquele momento, é que eu não tinha nenhuma arma na mão, nenhuma pedra,
coquetel molotov ou qualquer coisa que justificasse o excesso de poder do qual
o policial fazia uso naquele momento. Provavelmente, se depois eu tivesse a
audácia de perguntar ao policial porque tivera aquele comportamento, ele talvez
dissesse a mesma frase nacionalmente atribuída ao Capitão Bruno, três meses
depois: “Foi porque eu quis”. Quiçá acrescentasse um “porra”, no final da
frase, por força do hábito.
Imagem autoexplicativa.
Outros policiais se
aproximavam. Um deles “deixou o pé” na minha cabeça, seu enorme coturno me
fazendo fechar os olhos. Do estranho ângulo de visão que eu tinha naquele
momento, vi o policial que havia me chutado, em seu ar imponente, com mão no
coldre, peito pra fora e barriga pra dentro, como manda o código de conduta do
bom policial.
Opa,
você bateu na minha cabeça, mas eu sei que foi sem querer, então tá desculpado,
seu policial.
Esta fala aconteceu apenas
na minha cabeça posteriormente, quando rememorei os acontecimentos daquela
tarde. Evidentemente, o policial não fez qualquer menção ao pequeno – mas ainda
assim desnecessário – chute que me dera. Na remota possibilidade de ter sido um
choque acidental, não estava em seus planos pedir desculpas. Afinal, eu era
apenas um vagabundo. E policial que é policial não pede desculpas, quem dirá
para um vagabundo.
Eu nunca fui preso antes,
sequer havia recebido uma abordagem de rotina por um policial. Mas já assisti Polícia 24 Horas o suficiente para
compreender como se dá o processo de assujeitamento e submissão que os
policiais impõem sobre o bandido – porque aqui no Brasil é assim: quem vai preso é bandido. As pessoas de bem não vão presas. Inclusive, se elas forem
muito honradas, podem até galgar cargos honrados, lá no Senado ou na Câmara dos
Deputados.
Prosseguindo, quando recebi
ordens para levantar, o fiz calado. Mesmo antes de receber os comandos do
policial, mantive as mãos para trás – em posição militar de “descansar” – e
minha cabeça abaixada, iniciando a farsa que se dava início naquele momento: minha
submissão física simbolizava uma submissão moral aos policiais; eles fingiam
que têm esse poder, eu fingia que é real e todo mundo fingia que acreditava.
Quando levantei, percebi o
Chris deitado próximo de onde eu estava – ele também não estava com sono, mas o
pedido do policial era tão gentil que não havia como resistir. Aqui preciso
glorificar seu gesto, pois Chris teria conseguido escapar da “abordagem”
policial, mas foi altruísta ao ponto de colocar sua preocupação comigo acima de
sua própria segurança e, principalmente, acima de seus instintos de
sobrevivência.
A imagem do dia: enquanto os holofotes se voltavam para Neymar, ali ao lado do Estádio, no escuro
centenas de pessoas eram abordadas por uma despreparada força policial, agindo com excesso de poder.
Fui colocado lado a lado de
Chris. Em seguida, fui parcamente revistado pelo policial, que não estava muito
animado para tocar meu corpo a procura de facas, granadas e, quem sabe,
metralhadoras. Pra quem não sabe, eu sou cabeludo e barbudo, e costumo amarrar
o meu cabelo, seja penteado para trás ou repartido no meio, num rabo de cavalo
frouxo. Só ressalto essa informação, porque a seguir o policial puxou-me com
força pelo cabelo, me obrigando a dar dois passos cambaleantes em sua direção,
tendo destreza para não perder o equilíbrio, já que eu ainda estava em posição
de assujeitamento foucaultiano. Posteriormente, Chris disse que o policial me
tratou igual uma quenga. Realmente, eu me senti uma prostituta sendo puxada
pelo cabelo enquanto é possuída por trás.
O policial torceu meu braço,
aí não sei se foi necessário ou não – acho que nunca é, afinal, o que eu
poderia fazer ali? Fugir? Matar todos os policiais armados até os dentes da
manifestação e me intitular o Emiliano Zapata brasileiro? –, e finalmente me
colocou as “pulseiras” nas mãos. Como eu estava com as mãos para trás, nem pude
perceber se fiquei bonito de algemas.
Lembro-me de um policial ter
feito uma ou outra pergunta. Recordo-me ainda do policial abaixando a cabeça de
meu amigo, dizendo que era melhor ele abaixar a cabecinha, senão o próprio
policial teria que fazê-lo. Bem intimidador. Finalmente, fomos forçados a
entrar na viatura. Os policiais queriam nos levar para dar um passeio. E era um
convite bem persuasivo. Impossível recusar. Até que a parte de trás da viatura não
era de todo desconfortável. Só ficou apertadinho quando tivemos que dividir a
traseira do carro com mais dois vagabundos como nós. Só que pros policiais,
fundo de viatura é igual coração de mãe: sempre tem espaço para mais um.
Seria falso dizer que eu não
estava com medo. Seria uma mentira das grandes! Eu estava cagando de medo. Não
literalmente. Por sorte eu havia tomado meu remédio para copracrasia naquela
manhã, antes das provas da faculdade. Racionalizando, eu não tinha a menor
convicção de que os policiais me levariam para uma delegacia. Ah, como eu
queria que levassem! Nunca desejei tanto ser preso. Mas naquele momento, coisas
absurdas – ou não – se passaram por minha cabeça. Os hômis podiam muito bem
simplesmente nos levar para o meio do mato, dar quatro disparos e resolver tudo
por ali. Afinal, quem nos conhecia? Quem poderia provar que havíamos sido
presos? Eu realmente pensei “cara, eu me ferrei legal agora!” quando percebi
que estava isolado na hora da prisão, que não havia nenhuma testemunha para
filmar a minha cara e a cara dos policiais que me prendiam. A falta de imagens
e de testemunhas é um perigo tremendo em manifestações, especialmente numa
cidade gigante como Brasília.
Pensei em mamãe. Pensei em
papai, em minha irmã. Pensei em minha querida namorada e também em meus amigos.
Todos eles, que sequer sabiam que eu tinha ido numa manifestação. Pensei num
colega de minha idade que morrera meses antes, e em como aquilo ainda mexia
comigo. Pensei em minha própria morte, seria eu o primeiro a ser executado ou o
último? Seriam os demais que veriam meu corpo tombar após o tiro, o sangue a
jorrar abundantemente de meu corpo, já sem vida, ou seria eu quem veria um a um
meus coleguinhas de bacu serem mortos, toda a tortura psicológica antecedendo
cada execução, para enfim, ao final, chegar a minha vez? Como as pessoas que eu
amava reagiriam ao saber que eu estava morto? Qual seria a reação de colegas e
amigos de faculdade ao saberem que duas das mentes mais brilhantes da turma
haviam sido friamente assassinadas por policiais? Fiz minhas preces a Papai do
Céu, desejando de todo o meu coração que aquelas não fossem as últimas.
É indescritível a felicidade
e o peso que saíram de cima de mim quando vi que estacionaram o carro defronte
a delegacia. Nunca estive tão convicto de que poderia morrer a qualquer momento
quanto estive naqueles poucos minutos entre o local de minha prisão e a
delegacia. Mesmo depois de passar inúmeros e verdadeiros cagaços na cidade
grande, achando que seria assaltado, roubado, sequestrado ou algo do tipo, foi
vindo daqueles que deveriam me proteger que passei a situação de maior medo da
minha vida. Desci todo feliz e faceiro – apenas por dentro, pois por fora eu
tinha que manter as aparências e continuar minha encenação goffmaniana de
assujeitado foucaultiano.
A Representação do Eu na Vida Cotidiana, livro que embasa a teoria de Erving Goffman, que
afirma que atuamos socialmente, conforme o contexto em que estamos. Brinco um pouco com
a ideia central do pensamento goffmaniano em meu texto.
Ao comando do policial (sem
sequer um “por favor”, acreditam numa coisa dessas?) descemos da viatura
cabisbaixos. Agora eu compreendia que aquela cara de arrependimento que eu
cansei de ver nos programas do Datena e afins não passava de uma representação.
Ninguém se sentia culpado de nada, aliás, sentia sim, todo mundo se sente
culpado de ter sido pego. Marchamos para dentro da delegacia, como se
dançássemos “Que Bonita a Sua Roupa”. Com a cabeça abaixada, não vi os abutres
da imprensa ali na porta, filmando, fotografando e imortalizando aquele belo
momento de nossas vidas.
Nossa entrada triunfal na delegacia. O primeiro e o quarto cara são "di menores", o segundo sou eu
(o que tem o cabelo de viado bicha) e o terceiro é o meu amigo Chris.
CAPÍTULO
4 – INSTITUIÇÕES COMPLETAS E AUSTERAS
Em Brasília, aquela era a
segunda vez que eu adentrava uma delegacia. A primeira na qualidade de autor em
flagrante delito (qual delito mesmo, seu policial?). Fomos colocados num canto,
um ao lado do outro, todos olhando para a parede, ainda com as algemas nas
mãos. Embora eu não tivesse visto, tenho certeza que havia várias pessoas na
delegacia naquele momento, cidadãos resolvendo problemas de suas vidas,
aguardando para serem atendidos pelos agentes da polícia civil. Nossa, mas que humilhação! Mas você deve ter
morrido de vergonha por aquela situação humilhante, de ser tratado como
bandido, não é Kily? Sou obrigado a confessar que não. Não me senti
envergonhado, tampouco humilhado. Naquele momento, devo dizer que não senti
nada disso. Isso não era mais tão importante assim. Eu tinha preocupações
maiores naquele momento, como a de saber qual a repercussão daquela
manifestação, tanto em âmbito local quanto em âmbito nacional. Será que alguém
que me conhecia poderia saber de minha prisão pela televisão ou pela internet?
O problema era que no meu
bolso direito da frente, estava o meu celular. Mas eu sabia que as regras da
minha vida haviam mudado a partir do momento em que o policial apontara a arma
para mim e me mandara deitar no chão. A partir daquele momento, eu perdi todos
os meus direitos, em especial o direito de ir e vir. Eu perdi o direito de por
a mão no meu bolso (aí de mim se o tivesse feito naquela ocasião, o policial
provavelmente interpretaria como uma tentativa de sacar alguma arma, e me
alvejaria sem dó), perdi o direito de cutucar o nariz, perdi o direito de roer
as unhas, perdi o direito de fazer uma ligação e também perdi o direito de
querer que alguém estivesse se preocupando comigo enquanto eu estava no
cárcere.
Dentro da delegacia, estava
um homem de aproximadamente 50 anos, elegantemente vestido de terno. Ele nos
dirigiu a palavra, apesar de comandos em contrário dos policiais e, creio eu,
do delegado. Ele se apresentou como sendo advogado do movimento, e que era para
ficarmos tranquilos que em poucas horas ele nos tiraria dali e que era para nos
recusarmos a dar qualquer depoimento, resguardando-nos em nosso direito de
permanecer em silêncio.
Evidentemente, notei que os
ânimos estavam alterados. Creio que policiais, sejam militares ou civis, não
gostam da imprensa bisbilhotando o seu trabalho. E desta vez, haveria forte
pressão do lado de fora da delegacia para saber tudo o que acontecia do lado de
dentro.
Começava ali um
período de espera. E para fins informativos, contarei a seguir o que acontece
no sub-mundo do cárcere, onde câmeras não penetram, sobre o qual os filmes e
documentários tentam falar a respeito, mas que tive a felicidade de vivenciar,
de uma maneira muito reducionista, é claro, algumas horinhas deste ambiente.
Michel Foucault atuando na peça shakespereana "Hamlet", com a famosa frase "Ser ou não ser? Eis a questão."
Além desse trabalho, ele também atuou no filme "A Família Addams", como Tio Chico.
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Vigiar e Punir, outro livro que brinco muito durante este texto. Escrito pelo historiador e filósofo Michel Foucault,
ele trabalha com a ideia do sistema prisional e sua lógica. Relaciono apenas um pouco de meu texto com a ideia
foucaultiana, brincando com os títulos dos capítulos do autor francês.
Continua...