Um texto em homenagem aos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quem acompanha meu blog deve ter visto que meus dois últimos textos foram sobre o polêmico tema da redução da maioridade penal. Diferente dos últimos textos, em que defendi minha posição e ataquei os argumentos de quem tem uma posição contrária a minha, proponho algo diferente nesse. A seguir, será transcrito o relato de um amigo meu, aqui de Brasília. Esse relato é verídico. E ele é tão bom, que decidi publicá-lo, com autorização desse meu amigo. Ele falará por mim. Um caso real, que demonstrará porque sou contra a redução. Se nem mesmo ele for capaz de mudar a opinião do leitor que é favorável à redução, creio eu que nada mais o fará.
Era domingo. Eu tinha acabado de descer do ônibus, e caminhava rumo a minha casa. A parada ficava longe de casa, de modo que eu teria que caminhar ainda uns 500 metros até chegar ao meu lar. Eu estava com um livro na mão, lendo enquanto caminhava, quando fui abordado por um rapaz, montado numa bicicleta.
- Mano, você sabe me dizer pra que lado fica o Riacho Fundo I?
- Fica pra lá. - respondi, indicando a direção para o rapaz. O jovem deveria ter seus dezesseis, dezessete anos. Ao lado dele estava um garoto ainda mais novo, devendo ter seus dez anos de idade, também montado numa bicicleta. Ambos eram negros.
- Pow, mano, valeuzão ae. - disse ele, estendendo sua mão em minha direção, para me cumprimentar. Hesitei, mas por fim retribuí ao gesto, oferecendo minha mão. - Tu é parça.
De repente, me senti ansioso. Um alerta já se acendera tão logo fui abordado. E esse alerta ficava cada vez maior. Queria tomar logo o rumo de casa, dando fim a aquela inoportuna conversação. No entanto, o jovem prosseguiu sua resenha:
- Você tem horas aí, mano?
A luz de alerta se apagou. E se acendeu a luz de perigo. "Na certa ele quer que eu tire o celular do bolso, para ver se ele é moderno, e se vale a pena anunciar o assalto", pensei comigo. Retirei apenas a ponta do celular para fora do bolso, o suficiente para que eu conseguisse olhar as horas, sem deixá-lo ver o aparelho. Respondi as horas. Para minha surpresa, ele não anunciou assalto algum.
- Valeuzão aí, mano. - disse ele, estendendo a mão novamente, e me cumprimentando mais uma vez, aumentando minha confusão. - Então o Riacho fica pra lá, né? - ele repetiu a pergunta, como se tivesse esquecido a informação que eu lhe dera a pouco.
- É isso mesmo, é só você seguir reto naquela rua, que você chega lá. - respondi.
E então, a suposta simpatia que o jovem mostrara até então se desfez.
- Tu não tá de sacanagem com a minha cara não, né, mano? - suei frio, ante a abrupta mudança no tom de voz, que agora era de ameaça. - Se tu tiver tirando uma com a minha cara e me mandar pro lugar errado, eu dou um tiro na sua cara! - disse ele, vindo para minha direção, ainda em cima da bicicleta.
Acuado, olhei para o menino que estava com ele. O menino tinha os olhos arregalados, observando atentamente a tudo o que acontecia, sem proferir qualquer palavra.
- Não, não tô de sacanagem, não. O Riacho fica pra lá mesmo.
- Ah, então tá de boa. Valeu aí, mano. - disse ele, voltando ao tom de voz anterior, simpático, me cumprimentando pela terceira vez, para minha total perplexidade. - Deixa eu te falar: cê num tem aí um real pra me descolar, pra eu e mais ele comprar algo ali pra gente comer?
Gelei. Se eu dissesse que não, temia uma nova reação explosiva. Se eu dissesse que tinha, para evitar que ele tivesse esse tipo de reação que eu temia, eu seria obrigado a abrir a minha mochila, e depois pegar e abrir a minha carteira na frente dele. E quando ele visse as notas que ali haviam (tinha uma quantia considerável em minha carteira), não sabia o que aconteceria. E para ajudar ainda mais, a rua estava completamente deserta. Não havia uma alma viva para me socorrer naquele momento.
Acabei por abrir a mochila, e tentei remexer na carteira sem tirá-la da mochila. Missão ingrata.
- Tira a porra da carteira da mochila, seu bosta! - gritou o rapaz.
Agora sim eu fiquei preocupado. Obedeci. Tentando controlar o nervosismo diante daquele situação, abri a carteira, procurando uma moeda de um real para dar para ele. Mas antes que eu o fizesse, ele disse, em tom autoritário:
- Passa toda a grana! - disse ele.
Em nenhum momento, ele mostrara uma arma. Através da camiseta branca que ele usava, pude perceber uma protuberância. Mas daí a dizer se aquilo era um revólver ou não, eu não saberia dizer. Mas e uma coisa eu estava certo: eu não estava disposto a pagar para descobrir. Minha vida valia muito mais do que o dinheiro que havia em minha carteira. Entreguei o dinheiro para ele.
- Passa as moedas também, seu bosta! - disse ele. Aquele moleque não estava para brincadeira. Não ia poupar nem os trocadinhos no busão que eu tinha.
- Só libera os meus documentos aí. - consegui dizer, meio tenso, preocupado que ele acabasse levando toda a minha carteira, incluindo meus documentos, me gerando enorme dor de cabeça depois para providenciar segunda via de tudo.
- Fica tranquilo, que eu só quero a grana, não vou levar seus documentos não. - respondeu ele, num novo lampejo de gentileza. - Anda logo, seu bosta!
Eu tinha muita moeda na carteira. Fui estúpido em sair na rua em pleno domingo com tanto dinheiro, sem qualquer necessidade. Entreguei para ele tudo, o que lhe fez ter que utilizar as duas mãos para apanhar as moedas que eu lhe passava. Aquele momento, em que ele ficou com as duas mãos ocupadas, era o momento ideal para eu desferir um soco com toda a minha força bem na fronte do rapaz. Provavelmente, se eu fosse bem sucedido, ele desmaiaria, cairia da bicicleta, ou talvez até mesmo morresse, a depender de como a minha mão atingisse sua cabeça. Em contrapartida, se eu fosse mal sucedido, deixaria o cara puto da vida, e aí eu não sei o que aconteceria a seguir. Fui conservador, e nada fiz.
- Agora some daqui, seu bosta! - disse ele, encerrando nosso amigável e feliz encontro.
Obedeci, com tempo de dar um último olhar para aquele outro menino, o mais novo, de aproximadamente dez anos. Ele continuava com o mesmo olhar atento, observando toda a cena, como se participasse de uma aula prática. Caminhei, até chegar em casa. Aquele assalto aconteceu a menos de 200 metros de uma delegacia de polícia.
Naquele dia, perdi uns 80 reais. Mas nada de ruim aconteceu comigo, o que me encheu de uma profunda paz. De vez em quando, eu ainda me pergunto o que terá acontecido com aqueles dois meninos. O mais velho, estará ainda vivo? Cometendo outros crimes? Estará preso? Mas é o menino mais novo quem me desperta maiores questionamentos. Pensei muito nele depois daquele dia. No papel praticamente nulo que ele desempenhara no assalto. Imaginei inúmeras vezes o que de fato teria acontecido naquele dia. E cheguei a uma conclusão: o mais velho estava ensinando o mais novo como assaltar. Estava mostrando como é que se faz. Como fazer uma pessoa se borrar toda de medo, e fazê-la passar tudo o que ela tem em troca de sua vida. Ele deve ter se sentido o máximo, sendo o professor de um menino mais novo. Por vezes, imaginei ele dizendo: "viu só como se faz, pirralho? O próximo agora é com você, eu só vou ficar no apoio". O que ele esqueceu de falar para o menino mais novo é que uma hora as coisas podem dar errado. E basta uma única vez para a casa cair. Em algum momento, alguém não tão passivo quanto eu, alguém com o pavio mais curto pode acabar reagindo. Uma hora, pode se cometer a besteira de assaltar um suposto civil, que na verdade é um policial à paisana...
Quando penso no garoto mais velho, não sinto raiva. Quando penso no garoto mais novo, sinto profunda pena. Penso que se nada for feito para mudar essa lógica, aquele garoto vai se tornar igual ao mais velho. Aqueles imensos olhos que observaram ao meu assalto, tão inocentes (ainda), se tornarão os olhos sem qualquer piedade, que estarão assaltando algum adulto no futuro. Aquela criança, talvez daqui alguns anos, seja tida como um monstro, um marginal, um vagabundo, ou bandido, alguém que merece ser punido severamente por suas "escolhas" erradas. Mas que escolhas são essas, afinal de contas? Ninguém vai se lembrar do que ele era antes, e de que ninguém zelou pelo seu desenvolvimento num ambiente adequado.
Quem chama esses adolescentes que cometem crime de monstros, até tem lá sua razão. Mas antes de se tornarem monstros, eles também foram inocentes. E se eles se tornaram monstros, foi por nossa própria culpa enquanto sociedade, que permitimos que a desigualdade social se perpetue, levando pessoas a ter que lançar mão desse tipo de ação, para sobreviver. É sempre a mesma coisa: a lei do mais forte. Em alguns momentos, o mais forte pode ser o "mais qualificado", ou o "com mais estudo". Em outros, o mais forte pode ser aquele "que tem o revólver na mão". A redução da maioridade penal não mudará em nada a lógica que permite que meninos tão novos se tornem criminosos. Apenas os punirá por terem "escolhido", muitas das vezes, a única opção que lhes foi dada.