sexta-feira, 30 de março de 2012

Abacaxis

Wagner¹ estava na parada de ônibus, sozinho, quando um mendigo se aproximou, com as mãos espalmadas:
- Você tem algum dinheiro para me dar? Alguma ajudazinha qualquer?
Wagner levou as mãos até o bolso de trás de sua calça jeans recém-comprada, encontrando uma solitária moeda de um real. Entregou-a ao mendigo. Sentiu pena do sujeito, totalmente esfarrapado, com uma camisa branca surrada e uma calça jeans rasgada, além de um cheiro putrefato, nauseabundo.
- Obrigado jovem, que Deus lhe pague em dobro. – disse o indivíduo, se afastando.
Wagner murmurou uma resposta ininteligível. Ateu convicto, ele surpreendia-se com o fato de sujeitos como aquele invocarem o nome de um deus que permitia que chegassem àquela deplorável situação.
- Que horas são, jovem?
Olhando para o lado, Wagner percebeu que o sujeito voltara, dessa vez para perguntar o horário (como se algum mendigo tivesse compromisso e não pudesse perder a hora). Ele fez o movimento de olhar para o pulso, quando se lembrou de que seu relógio fora roubado no assalto que sofrera na véspera. Não pôde deixar de associar o assalto que seu ônibus sofrera na antevéspera. Estava tendo uma semana de cão. E era apenas quarta-feira e já vivenciara dois assaltos. Tirou o celular do bolso, um celular ordinário, comprado por um preço baixo. Em sua atual situação não compensava comprar celular moderno. O último que comprara também fora roubado, no assalto de duas semanas atrás. O que o deixou mais irritado neste caso, foi o fato de sequer ter terminado de pagar o aparelho. Agora tinha que terminar de pagar por um objeto que o amigo do alheio subtraíra. O visor do celular anunciava 18 horas e 2 minutos.
Comunicou ao mendigo o horário, que agradeceu e afastou-se. Ele próprio estava ansioso pelo horário. Tivera um dia cheio e não via a hora de chegar em casa e tomar um relaxante banho. Comeria um bom prato de comida para saciar sua fome e em seguida curtiria sua já tradicional sessão de pornografia. Antegozava o prazer de seu aconchegante lar, quando mais uma vez o mendigo retornou a dirigir-lhe a palavra, porém desta vez num tom de voz totalmente diferente.
Assustado, Wagner vislumbrou a lâmina da faca que sabe-se lá de onde saiu. Desta vez, num tom agressivo, o mendigo, com uma das mãos espalmadas em posição de receber, tal como antes, exigia que Wagner passasse o celular. A faca cortava ameaçadoramente o ar, como advertência contra qualquer gracejo que ele tentasse fazer. Seria inútil enfrentar o mendigo. De súbito, o mesmo que parecia tão frágil, passou a demonstrar uma lucidez surpreendente.
- Passa o celulá! – foi a ordem do mendigo.
- Bicho, eu não acredito que você ta fazendo isso! Eu te dei dinheiro e você ta me assaltando?! – disse Wagner, sinceramente surpreso com a reviravolta da situação.
- Anda logo playboyzinho! Passa o celulá! – vociferou o mendigo, não se importando com o que sua vítima disse.
Sentindo a raiva aflorando, Wagner, impotente, entregou o celular para o mendigo. “Que disparate, ainda ser chamado de playboyzinho! Eu que me mato o dia inteiro para ganhar um salário medíocre, sou chamado de playboyzinho? Aí já é demais!”, pensou Wagner.
- Agora passa a grana! – exigiu o mendigo.
E agora, o que fazer? Wagner fez um raio-x mental de tudo o que possuía nos bolsos da calça: seu cartão da Fácil², totalmente zerado, sem créditos, duas notas de dois reais, um batom, as chaves de casa e mais nada. Na bolsa, apenas material escolar e marmita. Se entregasse aqueles quatro reais para o sujeito, não teria como voltar para a casa. Resolveu recorrer a sua longa experiência em assaltos para negociar com o sujeito:
- Bicho, eu to sem grana nenhuma no bolso. A única coisa que eu tenho aqui é meu cartão da Fácil, que é com ele que eu vou pegar meu ônibus pra ir pra casa. – o mendigo titubeou, ante o discurso de Wagner. Após uma pausa, Wagner acrescentou, tentando dissuadir o indivíduo – Velho, você já pegou meu celular, agora me deixa ir numa boa.
Levemente comovido com o pedido de Wagner, o mendigo resolveu deixar ele ir. No fim das contas, ele já saíra no lucro mesmo.
- Some daqui, seu vagabundo! – gritou o mendigo, agitando a faca e forçando Wagner a se afastar.
Essa é boa, eu passei de playboyzinho para vagabundo. Eu não to valendo mais nada mesmo, pensou Wagner.
Totalmente humilhado, Wagner se afastou. Geralmente, o indivíduo quando cometia um assalto costumava evadir-se imediatamente do local do crime. Neste caso, foi Wagner quem teve que sair do local do crime, e ainda por cima sendo chamado de vagabundo. Por outro lado, ainda contou com a sorte, pois dizer que só tinha o cartão da Fácil foi uma manobra arriscada.
O jeito agora é procurar outra parada de ônibus, pensou Wagner. Felizmente, já na outra quadra ele localizou uma parada de ônibus. E esta, diferente da anterior, não estava deserta. Um garoto de aproximadamente dez anos estava sentado no banco da parada, aguardando um ônibus. Em pé, um senhor gordinho estava com um carrinho de sorvete. Assim estava ótimo. Três pessoas inibiriam a ação de outro vagabundo. Chegando à parada, abordou o sorveteiro, comprando um picolé de morango. Tão logo recebeu o dinheiro de Wagner, o indivíduo entregou o troco, agradeceu pela compra e se afastou. Para ele, duas pessoas não era tão atraente assim, do ponto de vista comercial.
Saboreando seu sorvete, Wagner aguardava o ônibus. Foi quando um comando gelou-lhe a espinha, mais do que qualquer sorvete do mundo faria:
- PASSA A GRANA!
Incrédulo, Wagner olhou para trás, para confirmar o óbvio. Aquele menino que mal saíra das fraldas o estava assaltando. Decidiu se impor diante do garoto, que tinha um canivete na mão direita.
- Velho, eu só tenho o dinheiro do ônibus pra ir de volta pra casa e eu não vou te dar não! – disse Wagner.
Sem hesitar, o menino retrucou:
- Então passa o sorvete!
Wagner arregalou os olhos. A semana estava sendo uma merda mesmo. Os bandidos não estavam perdoando nem um sorvete mais.
- Anda logo que ta derretendo, mer’mão! – gritou o guri.
- Toma bicho, fica de boa! – disse Wagner, entregando o picolé para ele.
O menino deu uma selvagem mordida no picolé, deixando escorrer o líquido cor de rosa pela face. Ele exultava, com o sucesso de seu empreendimento. Provavelmente o cocôzinho está se sentindo mais homem por ter realizado um assalto, pensou Wagner.
Dando outra mordida no sorvete, o menino se afastou. Menos mal, pensou Wagner. Pelo menos, desta vez ele não seria obrigado a mudar de parada. Viu o menino chegando à esquina, onde o sorveteiro estava parado.
Ai, corre seu idiota, senão você vai ser assaltado também! Corre, corre! Tarde demais!, pensou Wagner, já antevendo o desfecho da cena.
O que se passou a seguir não está descrito nem nas mais criativas antologias. A cena que se seguiu foi bizarra. O menino, todo feliz, estendeu a mão com o picolé na direção do sorveteiro, que deu uma mordida. Em seguida, o sorveteiro abraçou o garoto, fazendo um cafuné em sua cabeça. Wagner, mestre em leitura labial, conseguiu decifrar o que o sorveteiro disse para o menino: “parabéns Ricardinho! Esse é o meu garoto!”.
[...]
Já dentro do ônibus, Wagner repassava todos os fatos da última hora, os dois assaltos consecutivos. Voltava também para os assaltos anteriores. Era muito azar ser assaltado tantas vezes seguidas. Levantou-se do banco do ônibus, puxou a cordinha e dirigiu-se ao fundo do veículo. Na próxima parada de ônibus ele desceria.
Depois de saltar do ônibus, Wagner olhou para a quadra seguinte, onde ficava sua casa. Eram aproximadamente 150 metros de distância. Porém o sol já havia se posto, o que tornava a distância perigosamente grande. Nestes 150 metros, bem sabia Wagner, tudo podia acontecer. Começou sua caminhada rumo a casa. Na direção oposta vinha um sujeito, aparentemente se tratava apenas de um vagabundo, mas talvez fosse um traficante, ou ainda um assassino sanguinário, ou um estuprador que gostava de ver suas vítimas sofrendo, para no momento do orgasmo matá-las com uma facada na jugular.
Wagner calculava mentalmente a distância que faltava para sua casa, que estava entre ele e o homem que vinha na outra direção. Porém, pelos seus cálculos, ele não conseguiria em casa antes de cruzar com o homem. Correr seria uma opção, mas uma tola opção. Ele bem sabia que correr naquele horário poderia despertar a atenção dos traficantes, que se sentindo acuados, dariam tiros para todos os lados. As chances de ele ser alvejado pelos tiros seriam enormes.
Momentos tensos, a cada segundo que se passava, Wagner ficava mais próximo do elemento, que caminhava em sua direção, olhando no fundo de seus olhos. Vivendo intensa angústia, Wagner começou a delirar.
Ai meu deus, ai meu deus, o que será de mim? Se eu tivesse algum dinheiro no bolso, mas eu gastei tudo na passagem de ônibus. Na hora que ele for me assaltar, ele vai ficar puto por eu não ter dinheiro e vai querer me comer! Será que ele é do tipo sádico? Será que ele vai me poupar depois de ter me deflorado? Mas porque eu iria querer ser poupado, depois da desonra ter me atingido?! Isso deve ser mil vezes pior do que fazer exame de próstata. O melhor que ele pode fazer depois de me estuprar é me matar mesmo. Será que minha querida mãezinha vai encontrar meu corpozinho pra poder me enterrar com o mínimo de dignidade? Será que eu vou aparecer no Balanço Geral? Ai meu deus, ai meu deus!
Instante apocalíptico na vida de Wagner, quando cerca de cinco passos antes de cruzar com o homem que vem na direção contrária, percebe que este leva as mãos até a braguilha, onde mexe no zíper, ao mesmo tempo em que diz com sua voz grossa, de vilão de cinema:
- É o seguinte parceiro...
No limite do estado emocional que um ser humano é capaz de suportar, Wagner explode. Começa a arrancar a camiseta, deixando a mostra um peito raquítico e albino, com apenas um pelo teimoso que insiste em crescer. Também arranca o tênis e as calças, revelando as brancas ceroulas com bolinhas vermelhas por baixo, ao mesmo tempo em que diz desesperadamente, com voz de choro:
- Ai bicho, toma! Leva o meu tênis, leva a minha calça novinha, leva a minha camiseta, a minha mochila, leva tudo! Pode levar tudo o que eu tenho, mas pelo amor de deus, só poupa o meu...
- Peraí, peraí! O que que ta pegando aqui? – indaga o homem, surpreso com a cena que se desenrola em sua frente.
- Ué, você não ia me assaltar? Me estuprar? Me matar? Me esquartejar? – diz Wagner, à beira de um colapso nervoso.
- Mas é claro que não! Eu só ia perguntar pra que lado fica Taguatinga.³
¹ Obrigado Wagner, por compartilhar sua história comigo. Graças à você, consegui escrever essa postagem, baseada nos fatos reais que se passaram em sua conturbada vida.

² Fácil é o nome irônico da empresa que confecciona os cartões de ônibus do DF. O nome correto, evidentemente, seria Difícil. Se você quiser fazer seu cartão de ônibus, clique aqui e informe-se sobre os procedimentos.
³ Pra quem chegou até o final da postagem e não entendeu o motivo do título ser "Abacaxi", eu recomendo que assista ao vídeo Estuprofobia, hospedado no Youtube.

domingo, 11 de março de 2012

Brasília versus Resto do Mundo

Nos últimos dias, recebi milhares de e-mails contendo elogios referente a uma foto de minha postagem anterior. Gostaria de aproveitar este espaço para agradecer a todos pelo carinho que sempre me dispensam. Sei que nem todo mundo é fotogênico como eu. Bem, mas pretendo falar sobre isso mais detalhadamente em breve.

Como correspondente do blog Pra Gente Rir em Brasília, fiz uma pesquisa para medir o nível de qualidade de vida desta cidade. Para servir como parâmetro, decidi usar a ilha, que é um conhecido referencial de medição de qualidade de vida, por ser uma das melhores cidades para se viver (e principalmente se morrer) do mundo.

Após pouco mais de um mês vivendo na cidade de Brasília, resolvi exercitar meu lado pesquisador, procurando indícios científicos para dar um parecer sobre a qualidade de vida nesta cidade. Na pesquisa abaixo, tomei como referencial a cidade de Piraju, minha terra natal. O motivo, antes que o leitor mais exacerbado se manifeste, foi o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Ilha, que é considerado um dos mais altos do universo. Para cada pergunta, existe apenas uma resposta correta: SIM ou NÃO. Para cada resposta de diferentes perguntas, foi atribuído um diferente peso. Ao final, pode-se estabelecer um comparativo preciso sobre as duas localidades. Segue abaixo a exposição dos dados coletados e dos resultados de minha trabalhosa pesquisa:

Sem mais delongas, passemos a pesquisa e a seus resultados: