Uma postagem sobre pandeiristas.
Hoje é dia dos pais.¹ Eu não tenho pai. Perdi contato com o meu genitor aos 4 anos de idade. Segundo minha mãe, ele estava estressado comigo e foi comprar cigarros logo depois de ter me dado uma surra com uma régua de madeira. Disse que voltaria após desestressar um pouco. Presumivelmente, por meio do consumo de nicotina. E nunca mais voltou. Talvez ainda esteja procurando os cigarros. Ou ainda não tenha desestressado. Ou, talvez, essa tenha sido apenas uma desculpa para não assumir a paternidade. Sábio homem!
Bom, essa é a história que a minha mãe conta. Eu não tenho memória sobre o ocorrido. O mais perto que eu possuo de lembrança é o hematoma deixado pela reguada que levei no braço. Mas esse texto não é sobre meu pai. É sobre os pais, em geral. Ou, mais especificamente, sobre pandeiristas.
Hoje de manhã, resolvi quebrar o protocolo e sair de casa. Alguma bobagem dita pelo meu psiquiatra sobre eu precisar de vitamina D, tomar sol e essas baboseiras. Coloquei um fone de ouvido, caminhei a esmo, até que acabei passando em frente a um conjunto de bares. Antes que o leitor malicioso desconfie: não, eu não entrei em nenhum deles. Aliás, quase todos estavam fechados. Algo sobre as pessoas se sentirem socialmente obrigadas a demonstrar afeto àqueles que lhes possibilitaram o "dom" da vida por meio de consumo, compras, almoço e demonstrações públicas de afeto via stories do Instagram. Uma tentativa de ajudar que seus genitores não se deparem com a pergunta com a qual meu pai jamais terá que se confrontar: "por que mesmo eu não dei no pé?"
No entanto, um dos bares estava aberto. Com música ao vivo. Digo "música", mas obviamente essa é uma catacrese.² Provavelmente, pagode. Aquele som apreciado por pessoas sorridentes que parecem que não entenderam o que realmente está acontecido aqui. E que não há muitos motivos para sorrir. O fato é de que, não bastasse os elementos tocarem pagode, havia entre eles um pandeirista. Isso mesmo, leitor. Um pandeirista!
Pandeirista, para quem não sabe, é o músico (rsrsrs) que toca pandeiro. Também chamado de pandeiro, pandeireta e pandeirola. Ou, meu sinônimo preferido, perdedor.
Domingo. Dia dos pais. Eu caminhando. Passando diante de um bar. Com música ao vivo e de qualidade questionável. E um ser tocando pandeiro. Um ser que acordou em um domingo de manhã, arrumou-se, vestiu-se e saiu de casa achando legítima e digna a incumbência de se sentar em um bar para requebrar uma de suas mãos em um pandeiro. E, mais importante, um ser que, salvo se eu estiver enganado e ele for fruto de reprodução assexuada, possui um pai. Um pai que certa noite—manhã ou tarde, vai saber!—engajou-se no ato coital sem saber que contribuiria com seu material genético para que um ser, já em fase adulta, achasse digno ser pandeirista.
Como é de conhecimento popular, o pandeirista, além de tocar um pseudoinstrumento totalmente irrelevante para o arranjo da banda, só está no grupo musical por ser amigo dos demais integrantes. Ele é tipo aquele irmão café-com-leite, que joga videogame com o controle desconectado, pois ainda não tem idade—ou quociente intelectivo—para participar em pé de igualdade das atividades sociais dos irmãos mais velhos e seus amigos. A prova disso é que, se o pandeirista por um acaso perder a hora, os demais membros sequer se darão conta de que falta alguém para que possam iniciar o show (de horrores).
Voltando ao assunto... terminei minha caminhada, segurando-me para não chorar, ao pensar na enorme quantidade de pais espalhada por esse país³ que cuidaram de seus filhos, foram presentes, passaram talquinho nos bumbuns de seus bebês, para que esses não ficassem assados... para, no fim das contas, terem seus filhos, em plena adultícia, sentados em bares quaisquer, tocando pandeiro, achando-se minimamente relevantes para o mundo.
Por isso, dedico essa postagem a todos os pais desse Brasilzão. E, especialmente aos pais dos pandeiristas, eu deixo um forte abraço e um carinhoso e singelo recado: a culpa não é de vocês!
Feliz dia dos pais! =D
¹ O "paus", no título da postagem, não foi um erro de digitação. Meu assessor de marketing, Rodolfo Britto, disse que um pseudoerro seria bom para os negócios. Tenho lá as minhas dúvidas. É claro que minha desconfiança sobre essa sugestão não está relacionada a ele ter se formado no Instituto Universal Brasileiro. Enfim, decidi seguir o conselho dele. Afinal de contas, ele é pago para isso. E, infelizmente, ele é o único profissional do marketing que eu consigo pagar hoje com o que sobra após eu pagar meus aviõezinhos.
² Segundo o Dicio, catacrese é "uma figura de linguagem através da qual uma palavra é empregada com sentido alterado, em relação à sua real significação, por falta de uma palavra própria: embarcar num trem; folha de papel; enterrar uma agulha na pele". Aplicado ao presente texto, "música" é uma catacrese, na falta de uma melhor expressão para se referir ao conjunto assíncrono de sons produzido por pagodeiros amadores. O que eles faziam era um amontoado de sons, com a patética pretensão de que socialmente eles fossem lidos como músicos. Doravante, de modo a melhorar e legibilidade do texto, omitirei as aspas sempre que eu me referir ao termo "música" no texto. O leitor deve entender que as aspas estarão subentendidas na presente narrativa.
³ Aqueles que não foram comprar cigarro. Ou aqueles que foram, mas que fizeram a besteira de regressar.