quinta-feira, 25 de junho de 2015

Redução da Maioridade Penal

Postagem número 100.¹

"Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou antes, e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado"
Betinho                                        

A convenção social diz que devemos ser tolerantes e respeitar as opiniões alheias, mesmo que contrárias às nossas. Mas eu confesso que não consigo respeitar muito a opinião de quem é a favor da redução da maioridade penal, porque considero esta uma opinião ignorante e extremamente egoísta.

Recentemente, tem-se discutido no Congresso Nacional a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. E as discussões do plenário têm se estendido também para outros lugres, como entre amigos e familiares, no meio acadêmico e até mesmo nas redes sociais. Pra começar, eu tenho uma opinião bem radical sobre o assunto: eu não só sou totalmente contra a redução da maioridade penal, como também acho que este é um assunto tão impensável que nem deveria ser tema de discussão na atualidade. Fora o retrocesso que, ao meu ver, acontecerá com a aprovação de tal proposta, os argumentos em favor de tal redução são pobres, reducionistas e tendenciosos. Meu objetivo nesse texto é fazer uma reflexão sobre o assunto, explicando alguns dos motivos pelos quais eu sou contra a redução da maioridade penal.

Primeiramente, o argumento basal que permite dizer se devemos, ou não, condenar as pessoas por suas ações é a nossa crença de que elas têm poder de decidir aquilo que fazem. Essa consideração de que temos um livre arbítrio é fundamental para justificar a atribuição de culpa às pessoas pelas escolhas ditas erradas que elas tomam ao longo da vida. Mesmo que o livre arbítrio exista - veja bem, não estou sequer assumindo que ele existe, estou apenas considerando tal possibilidade -, duvido muito que ele seja esse livre arbítrio romântico idealizado pelas pessoas, em geral: um livre arbítrio que está acima de qualquer coisa, do tipo que assume que se a pessoa realmente tiver uma postura moral correta, nada irá dissuadi-la de se comportar moralmente. Podem colocar uma faca em sua garganta, que mesmo assim ela continuará seguindo os seus princípios. Pode vir até a passar fome, mas jamais agirá contra a lei. Tudo pode estar errado em sua vida, mas ainda se comportará segundo aquilo que aprendeu ser o certo.

Tenho a sensação de que as pessoas que apoiam a redução da maioridade penal se consideram cidadãos exemplares, modelos da moral e dos bons costumes vigentes, pagadores de seus impostos, trabalhadores e cumpridores da lei. E, em contrapartida, os marginais, segundo o pensamento de tais puritanos, são apenas pessoas que decidiram - conscientemente e sem nenhuma pressão do ambiente para isso - seguir o caminho mais "fácil": o caminho do crime. Tal pensamento puritano me enche de nojo. Desconsiderar a influência que o meio social exerce sobre o indivíduo é de uma estupidez absurda. "Ah, mas eu conheço um cara que também veio de família simples, de um lugar adverso, e nem por isso virou bandido. Esse sim é um exemplo de alguém que venceu na vida". Tá aí outra coisa que me enoja: utilizar casos que são exceções para refutar a regra geral. Vou dar um exemplo: imagine que um menino tenha uma família desestruturada, uma mãe com muitos outros filhos, um pai ausente, que ainda por cima é alcoólatra, passando necessidade em casa. Você realmente acredita que existe um livre arbítrio que transcende a todas as adversidades enfrentadas por essa criança? Você acha que a influência positiva da professora na escola - se ele frequentar uma - será o suficiente para que essa criança, que até fome passa, trace um caminho melhor para sua vida? Eu diria que isso é pouco provável. Mas acho que os defensores da redução não conseguem enxergar isso. Suponha que na comunidade, com o tempo, essa criança descubra que existem meios de ascender socialmente - afinal, não é isso que o sistema capitalista prega? -. Porém, esses meios são ilícitos. Ela encontra em algum indivíduo dentro de sua comunidade uma figura bem-sucedida, respeitada, que acaba se tornando um modelo para ela. Pode não ser o modelo ideal, mas é o único modelo que ela tem. Então, por que essa criança não deveria segui-lo? Eu sinceramente não vejo justificativas para isso.

Caro leitor, cara leitora, permita-me recorrer a mais uma alegoria: suponha que, numa sociedade hipotética, a moeda vigente sejam balas. Isso mesmo, balas de iogurte, daquelas que você compra em qualquer padaria. Suponha que essas balas sejam a moeda de troca dessa sociedade, que determinará quem tem mais poder de compra, e também determinará quem terá que suar a camisa para sobreviver. Suponha agora que nessa mesma sociedade, existam 30 pessoas e exatamente 30 balas. No entanto, cinco dessas 30 pessoas têm em suas mãos, juntas, um total de 20 balas. É uma questão de matemática básica: as outras 25 pessoas disputarão as 10 balas restantes. E é óbvio que não sobrará recursos para todo mundo. Agora, aplique a mesma lógica dessa sociedade hipotética à nossa sociedade atual: alguma semelhança?

A fantasia do capitalismo é que, diferente do feudalismo, em que as relações de classe eram estáticas, nele as relações são dinâmicas: no maravilhoso capitalismo é plenamente possível nascer pobre e ascender socialmente ao longo da vida. Mas, como diria o psicólogo Luis Cláudio Figueiredo, da mesma forma que você pode ascender no capitalismo, também pode chegar ao fundo do poço, enquanto a sociedade segue em frente, totalmente indiferente à sua desgraça. Mas o que se vende ainda do capitalismo é a fantasia do pote de ouro do outro lado do arco-íris. A minha questão é: por que somente o indivíduo que utiliza de intimidação e ameaça de morte para obter recursos é considerado criminoso, bandido, vagabundo, sem-vergonha, mas o fato de pessoas - com um pouco mais de sorte - acumularem capital não é algo considerado imoral em nossa sociedade? Ao prosperar financeiramente, não estamos de alguma forma "roubando" de alguém também?

Intimamente atrelada à ideia de livre arbítrio, temos a ideia de meritocracia, extremamente valorizada no capitalismo. Sem qualquer enrolação, devo dizer que considero a meritocracia tão real quanto o coelhinho da páscoa ou o papai noel. A meritocracia, pra mim, é uma triste e doce ilusão! Triste para os mais pobres, que realmente podem chegar a acreditar que se não têm sucesso na vida, é porque não se esforçaram o suficiente. E doce para os mais ricos (ou, para os menos pobres), por acharem que terem algum patrimônio é porque conquistaram isso pelos seus próprios méritos, e essa doce crença de que a sociedade é movida pelo mérito pode impedi-los de ajudar aqueles que "não fizeram por merecer". Caro leitor, se você realmente acredita que a sociedade premia aqueles que mais merecem pelos seus esforços por chegarem onde chegaram, sinto dizer que te enganaram bonito. Gosto da analogia feita pelo professor Michael Sandel²: a meritocracia poderia ser comparada a uma corrida de carros, e uma corrida justa seria aquela em que todos os pilotos tivessem carros com a mesma capacidade de desempenho e onde todos os corredores largassem lado a lado. Nesse caso, o piloto que vencesse, de fato, seria merecedor de sua vitória. Mas o que acontece na verdade é que, já no ponto de partida da corrida, alguns largam bem à frente dos demais. Além disso, alguns correm de Ferrari, enquanto outros, correm com um pobre Fusquinha. O mesmo se aplica para a corrida com a vida, onde uns dão a sorte de nascer num lar mais estruturado, com pais que têm condições de dar boas roupas, boa alimentação, matricular os filhos em bons cursos de línguas, em bons colégios. Enquanto outros mal conseguem garantir a subsistência de sua prole. Aí, décadas depois, quando o filhinho de papai se forma na faculdade e começa a ganhar dinheiro, acha que é merecedor de tal prêmio. Realmente, há justiça na corrida da vida? A meritocracia se faz presente nela?

Se o livre arbítrio não é assim tão grande, porque existe uma forte influência do meio, que em grande medida aponta os limites e possibilidades de ação de cada indivíduo, e se a meritocracia não passa de um engodo, então como justificar a redução da maioridade penal? Aqui finalmente posso justificar meu radicalismo mencionado no segundo parágrafo, ao dizer que acho que a redução da maioridade penal sequer deveria ser uma pauta na agenda política atual. Provavelmente, alguns dirão que o ECA não funciona. Aí eu devo rebater esse argumento. O ECA, assim como o SUS, é lindo. No papel. Se ambos não funcionam, não é porque a lei é ruim. Mas é porque a lei não é efetivamente aplicada. Então, ao invés de debater a redução da maioridade penal, por que não discutimos os motivos pelos quais o ECA, que foi promulgado há quase 25 anos³, até hoje não funciona? Por que se gasta tanto tempo e energia para discutir os "crimes" cometidos por menores contra a sociedade, mas não se gasta um pingo dessa energia para discutir os crimes cometidos pelo Estado contra esses mesmos menores? Por que a omissão do Estado é irrisória? Por que só as contravenções cometidas pelo menor são lembradas, mas os direitos assegurados - e não cumpridos - na letra da lei do ECA, nunca são mencionados? Por que essa memória tão seletiva, para lembrar apenas dos eventos que lhes convém, em prol da redução da maioridade penal?

Em nenhum momento, estou dizendo que não temos um problema social de criminalidade no Brasil, bem como o conhecido fato de que adolescentes "assumem a bronca" de crimes cometidos por maiores de idade, porque, como sabemos, "não dá nada pra di menor". Não estou desconsiderando o medo - que, às vezes, beira ao pânico - vivenciado por cidadãos e cidadãs diariamente, sobretudo nas grandes cidades, onde as diferenças sociais e, por conseguinte, a violência urbana, são mais nítidas. Só estou dizendo que reduzir a maioridade penal é covardia contra crianças e adolescentes que, em última análise, são primeiramente vítimas. E, definitivamente, encher ainda mais os presídios, não é a solução.

Criei uma analogia há alguns anos, para expressar o que o Estado faz com os problemas existentes. Apelidei essa analogia de "Teoria da Goteira". Imagine que tem uma goteira na sua casa, mas que, ao invés de subir no telhado para trocar as telhas e acabar com as goteiras, você opta por aparar a chuva que cai dentro de casa com baldes. As goteiras vão aumentando em quantidade, bem como o número de baldes para apará-las. Logo, sua casa está igual a casa da Dona Florinda. E eu te pergunto: você resolveu o problema? Não, né. Podemos dizer que você arrumou uma solução paliativa, mas não foi até a raiz do problema, eliminando-o. Reduzir a maioridade penal, seria igual aparar as goteiras das chuvas com baldes - na verdade, acredito que seria ainda pior, pois seria uma tentativa frustradas de melhorar a situação, acabaria até piorando. Pra resolver o problema de verdade, é preciso subir no telhado, procurar as causas da goteira e intervir sobre as causas. E não sobre os efeitos. A criminalidade não é a causa do problema. A criminalidade é o efeito. Querem combater algo de verdade? Então não mexam na maioridade penal. Encontrem a causa do problema. E a combatam.

¹ Agradeço ao meu amigo andarilho, pelos longos anos de amizade, e pelas muitas vezes que me auxiliou com suas críticas, comentários e incentivos. Em especial, por ter relido esse texto antes de sua publicação, contribuindo com sua sempre sagaz opinião.

² Recomendo muito a série de palestras desse professor, disponível legendada no Youtube. Toda a série pode ser encontrada a partir do link do primeiro vídeo da coletânea: https://www.youtube.com/watch?v=EC5rEhbH-fI

³ Estamos às portas de comemorar os 25 anos da lei, correndo o risco de ter uma triste notícia e retrocesso, nesse jubileu de prata. A Lei 8.069/1990 pode ser lida na íntegra aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm

sábado, 13 de junho de 2015

Moda Probabilística

Um novo conceito em estatística.

Em estatística, quando dizemos que a moda de um determinado conjunto de cores de camiseta é a cor azul, estamos simplesmente dizendo que aquele é o valor que mais se repete naquele conjunto. Sendo assim, a moda envolve um fato conhecido sobre um conjunto de dados, uma verdade inquestionável, e não uma mera especulação sobre aquilo que acreditamos ser a verdade. Trata-se, portanto, de um resumo de um conjunto de informações. É uma moda estatística.

No entanto, a palavra "moda" também é utilizada por profissionais da área homônima, para designar qual será a tendência de um determinado período. Neste caso, não estamos falando sobre um fato empírico, observável, que já ocorreu e que é possível ser julgado por duas ou mais pessoas, para posterior consenso dos observadores. Trata-se, portanto, de uma moda probabilística.

A moda estatística também é uma tendência. No caso, uma medida de tendência central. Uma síntese. Talvez não a melhor, nem a mais correta. Mas uma tentativa de resumir o que aconteceu. Já a moda probabilística é um pouco mais obscura. Me parece uma previsão baseada em nada, defendida por um suposto expert no assunto, e sustentada sem qualquer evidência real.

Vamos pensar um pouco mais sobre a moda probabilística. Como é que alguém pode dizer que "a roupa amarela vai vir com tudo na próxima estação, pois vai ser a moda, a tendência do verão"? Quais são os dados que predizem este acontecimento. Levanto três hipóteses a seguir, que visam explicar o exemplo dado neste parágrafo:

1ª Por algum motivo, a fábrica de roupas não tiveram acesso a nenhuma outra cor de tecido para produzir sua mercadoria. Aqui não importa muito se pegou fogo nos demais tecidos, se ninguém quis vender tecido de outras cores, ou se um caminhão de tinta amarela caiu sobre todos os tecidos. O que importa é que só tem amarelo, e o motivo pelo qual se prevê que a cor amarela será a mais usada é que não terão outras cores à venda nas vitrines;

2ª Um desejo coletivo levou a maior parte dos consumidores a exigir a cor amarela para a próxima estação, e a fabricação em massa de material nessa cor reflete apenas a vontade popular. Segundo esta hipótese, quando um especialista da moda diz que algo vai ser a tendência da próxima estação, ele está apenas baseando-se em dados reais que apontam para uma conclusão não empírica, mas totalmente lógica;

3ª Esta é a hipótese que mais me agrada, simplesmente porque é a que mais faz sentido pra mim (e, ao mesmo tempo, a que menos faz sentido). Neste caso, a explicação é a seguinte: os experts arbitrariamente decidem o que querem que esteja na moda futuramente, e independentemente de dados prévios ou da vontade futura das pessoas, plantam nos meios de divulgação em massa a semente de que algo estará na moda. O que eles fazem é sugestionar as pessoas a comprarem algo, se quiserem estarem na moda (ou, até mesmo, na média, e não ser um outlier).

Termino esse texto com um resumo: a moda probabilística é um conceito probabilístico que prevê a ocorrência de eventos futuros, sendo que o fator explicativo dessa previsão é a própria sugestionabilidade gerada pela previsão da moda probabilística.

Fim.