quarta-feira, 15 de abril de 2015

Estereótipo, Preconceito e Discriminação

Uma postagem factuada em baseados reais.

Um dia desses, eu ouvi a seguinte pérola: “Como assim você não é ateu?”.

A pérola em questão foi proferida por uma menina do meu curso, que se mostrava inconformada ante a descoberta de que eu, Kily, não sou ateu. No momento do ocorrido, eu também fiquei surpreso – no meu caso, surpreso pela surpresa dela. Fiquei tão surpreso que só depois que voltei pra casa que fui refletir sobre o ocorrido. Afinal de contas, quais elementos embasaram a teoria da jovem, para acreditar que eu de fato era ateu? Tá certo que eu não saio gritando aos quatro ventos qual é a minha crença. Mas também não ofereço nenhuma evidência em contrário, que leve alguém a crer que sou um descrente.

Essa garota fez uso de um estereótipo para me classificar como ateu. Os estereótipos nada mais são do que generalizações que fazemos sobre pessoas, grupos sociais ou situações, com base em esquemas que temos armazenados em nossa mente, e que facilitam a compreensão do mundo à nossa volta. No entanto, apesar de útil para guiar nossas ações no dia-a-dia, os estereótipos também possuem seus problemas. A maior parte dos julgamentos estereotipados que fazemos tem como alicerce alguma crença cultural, que não necessariamente se sustenta na realidade. Por exemplo, quando afirmamos que todo japonês necessariamente é inteligente, não estamos considerando o caso do Sr. Shiguefuzi, um nissei que tem raciocínio lógico de uma toupeira e extrema dificuldade na resolução de problemas gerais. Outro exemplo é o de quando julgamos que todo baiano é preguiçoso, até nos darmos conta de que a organização social da Bahia também gira em torno do trabalho (executado, em sua maioria, pasmem, por baianos). Ou ainda, quando acreditamos que todo corintiano é bandido... bom, aí eu devo reconhecer que esse é um estereótipo verdadeiro.

Mas voltando a história de eu ser (ou não ser...) ateu (... eis a questão), a menina continuava olhando incrédula para mim, depois de descobrir que eu não era ateu. Ela insistiu, com semblante horrorizado:

- Não, não, isso não é possível! Você tem que ser ateu! Olha só pra você!

O “tem que” foi dito com tanta ênfase que poderia ser substituído por “precisa” ou por “deve”, sem comprometimento do sentido da frase. “Você PRECISA ser ateu”. Segui o comando dela e tentei olhar para mim mesmo. Como ali não havia espelho, olhei para baixo, contemplando as roupas que cobriam meu castigado corpo: uma camiseta preta, uma calça jeans surrada e um tênis igualmente (e cumulativamente) preto e surrado. Fora a minha indumentária, também compõem o meu visual o meu cabelo comprido e a minha barba desleixada de estudante de humanas. Entretanto, a meu ver, nenhum desses elementos possui a qualidade de ateísmo intrínseca a eles.

- Sinto muito te desapontar, mas eu não sou ateu. – expliquei, do modo mais polido possível, realmente achando que eu devia um pedido de desculpas para ela, e temendo nova represália moral ou até mesmo uma agressão física.

- Ah, você deve ter cometido algum engano, Kily. Tem certeza que não é ateu? Absoluta? – confirmei com um movimento de cabeça. – Eu tinha certeza que você era ateu, roqueiro e satanista.

Decidi ficar calado e não comentar o contrassenso que era tal classificação, incluindo ateu e satanista ao mesmo tempo. Ao invés disso, brinquei:

- Na verdade eu sou judeu, pagodeiro e nazista.

Minha piada não surtiu o efeito desejado. A menina foi embora. Fim.

Apesar de eu não ser ateu, roqueiro, nem satanista, devo reconhecer que eu preencho em alguma medida aos estereótipos que as pessoas têm sobre as duas últimas figuras. Com meus cabelos e barba compridos, e sempre com uma camiseta preta, acabo passando por alguém que curte um rock ‘n roll. A única coisa que não repararam ainda é que minhas camisetas pretas são lisas, isto é, sem estampa. Nunca apareci em lugar algum com uma camiseta de banda, tipo Slipknot, Guns ‘n Roses ou algo do gênero. Mesmo assim, certa vez, um cara que estudava comigo se aproximou de mim e falou:

- Cara, você se parece muito com o Robson¹.

- Desculpe, mas não conheço esse elemento. – respondi.

- Cara, o Robson, guitarrista dos Robinstones.

- Continuo sem saber quem é. Não conheço tal banda também.

- Ô loco! Como não? Que instrumento você toca? – envergonhado, assumi que não sabia tocar nenhum. – Ah, fala sério, qual você toca? – e eu insisti que não sabia tocar sequer berimbau, que só tem uma corda, ou mesmo uma gaita caipira, que é praticamente só assoprar que o som já sai em forma de música.

A ideia aqui não é criticar os estereótipos das outras pessoas, mas propor uma reflexão sobre ele. Vou contar um episódio que aconteceu comigo mesmo há uns 3 anos, e mostra bem como é sério esse negócio do estereótipo. Eu estava voltando da faculdade, quando desci do ônibus. Já era bem tarde, a rua estava deserta, e eu tinha que caminhar cerca de 300 metros da parada de ônibus até o prédio onde eu morava. Enquanto caminhava, vi uma pessoa lá longe, também caminhando na direção contrária, isto é, em minha direção.

Na hora gelei. Meu coração acelerou. Já comecei a pensar no pior. Comecei a orar a Deus, pedindo pra ele perdoar todos os meus pecados e dizendo que se ele me livrasse daquele problema dessa vez eu jurava que eu realmente pararia de vestir lingerie feminina. E enquanto eu andava, torcia para que a pessoa que vinha na outra direção estivesse de camisa azul. Isso porque onde eu moro, camisa azul é uniforme de motoristas e cobradores de ônibus. E é aqui que está o meu primeiro estereótipo: quem trabalha é cidadão de bem, não comete crimes e não causa problemas para a sociedade.

Alguns segundos depois, para meu desespero, percebi que o sujeito que vinha em minha direção, além de não estar de azul, estava de chinelo, com um boné aba reta, uma bermuda de mano, e de quebra possuía a tez negra. Naquele momento, tive certeza de que iria morrer. Aqui estão outros estereótipos (é um conjunto deles, mesclados): uma pessoa que está na rua depois das 11 da noite e não está com mochila nas costas, nem com uniforme de cobrador, provavelmente não está fazendo coisa boa na rua. Se estiver vestido igual mano então, na certa é bandido. E se for negro, meu amigo, pode se preparar pra abotoar o paletó. Perceba que neste caso o estereótipo foi um pouco além e se tornou um claro preconceito, pois além das generalizações sem evidências, envolve atitudes negativas a respeito de determinadas características. Se eu pudesse resumir a Escala Subjetiva de Medo do Kily, ela ficaria mais ou menos assim:

- a roupa da pessoa é azul: é cobrador ou motorista de ônibus. Logo, nenhum medo;

- a roupa da pessoa não é azul: sinal de possível perigo. Logo, sinto medo;

- a pessoa está com boné aba reta e bermuda de mano: assalto na certa. Logo, sinto pavor;

- além do item anterior, a pessoa é negra: latrocínio garantido. Logo, me borro todo.

O desfecho da história é óbvio, dado que três anos depois, estou aqui postando esse texto: não fui assaltado, tampouco estuprado, e nada aconteceu. Apenas passei ao lado do rapaz negro, que nenhuma atenção deu para mim, e cheguei são e salvo em casa. E isso fez com que eu me sentisse muito mal, pois eu me percebi um tremendo preconceituoso naquele dia.

O terceiro elemento que faz parceria com o estereótipo e com o preconceito é a discriminação. A discriminação, diferente do estereótipo e do preconceito, é uma ação propriamente dita, muitas vezes embasada nos outros dois. A questão é que o estereótipo e o preconceito são pensamentos, ideias, valores, que não necessariamente são externalizados. Já a discriminação necessariamente é expressa através de comportamentos. E apesar de ser a mais explícita das três – no sentido de que acontece de modo que todos possam observar – ela deve ser também a mais velada de todas. Afinal, os estereótipos e até mesmo preconceitos vivem sendo expressos através de piadas. Mas a discriminação é um assunto tabu, pois ninguém quer ser chamado de racista, de misógino ou de homofóbico.

A discriminação pode ocorrer de formas sutis, como na hora de escolher sentar ao lado de uma pessoa no ônibus, só para não ter que sentar ao lado de outra, que, no caso, possui alguma característica “discriminável”. Suponhamos que nesse exemplo, a pessoa a quem evitei seja um homem com a barba por fazer, o cabelo despenteado e as roupas surradas. Se eu sinto nojo dele, porque julgo que a aparência dele denota pobreza e sujeira, a minha ação de afastamento foi preconceituosa. Outra forma um pouco menos sutil é a pessoa que diz: “não, eu não sou uma pessoa preconceituosa. Eu até tenho um amigo gay”, como se estivesse fazendo um favor para o gay (que ao se assumir publicamente como gay, perde sua dimensão humana, deixa de existir enquanto pessoa, e passa a ser somente um gay), ao ser amigo dele. Mas a discriminação pode ser ainda mais explícita, como infelizmente ainda acontece na Europa, onde a torcida chama os jogadores brasileiros de macacos e ainda atiram banana dentro do campo em alusão ao símio que aprecia essa iguaria.

Esse texto procurou explorar de modo bem humorado, o tripé estereótipo-preconceito-discriminação. Ao meu ver, ter estereótipos ou preconceitos não são o grande problema. O problema é tê-los e não saber/assumir que tem. É negá-los. Uma pesquisa feita pela Folha de São Paulo em 1995 investigou a temática do racismo. Na pesquisa, 80% dos respondentes afirmaram que acreditavam que ainda existia racismo no Brasil. Porém, quando perguntados se já haviam discriminado alguém, a maioria dos pesquisados responderam que não. O que depreende-se disso? Que o Brasil é um país racista, mas sem racistas. E essa negação pode levar a discriminação, o último e mais perigoso estágio desse tripé. Algumas pessoas podem alegar que não sabiam que eram preconceituosas. Sinto dizer, mas o desconhecimento não muda os efeitos da discriminação sobre suas vítimas. O primeiro passo rumo a qualquer mudança é reconhecer que o problema existe, e que ao contrário do que se pensa, ele é muito sério, e afeta toda a nossa sociedade.

¹ Robson aqui representa o nome de um músico. Como não me recordo qual músico o cidadão se referia quando me disse isso, preferi colocar um nome fictício. O mesmo se sucede com o nome da banda citado na sequência do texto. Vale ressaltar que, apesar da minha ignorância no tema, ao que tudo indica, se tratava de um nome expressivo no cenário do rock mundial, o que tornava a meu desconhecimento quase uma blasfêmia.