sábado, 7 de junho de 2014

Café-com-leite

Este foi o primeiro texto que produzi estando na UnB. No horário de almoço do dia 04 de junho de 2014, sem nada para fazer, apesar de ter um monte de coisa para estudar, durante uma ligação cotidiana para minha namorada, a ideia surgiu. Escrevi e fui ditando o que escrevia para ela ao telefone, enquanto ela ria da história. Naturalmente, os dois últimos parágrafos, em que falo dela, foram escritos depois que desliguei o telefone.

Dicionário Pra Gente Rir
Café-com-leite: s.m. 1. Indivíduo temporária ou permanentemente desprovido de habilidades cognitivas e motoras, que o torna merecedor da condescendência dos demais em jogos infantis. 2. Fracassado, perdedor. 3. Loser. 4. Bebida composta de café, ao qual é acrescido o leite. 5. Café-com-leite (1).

Uma xícara da bebida homônima.


Café-com-leite

Não, eu não me refiro à bebida, mas sim a expressão “café-com-leite”. Afinal, quem nunca na vida foi café-com-leite? Todo mundo um dia já foi café-com-leite, e alguns continuam sendo até hoje, como minha namorada.

Quando eu era criança – eu ia dizer quando eu era pequeno, mas eu ainda sou pequeno – e ia brincar de pega-pega ou de alguma outra brincadeira com primos e vizinhos, acontecia de aparecer o meu irmão mais novo, em início de fase de socialização, querendo brincar também. Só que ele era totalmente incompetente para seguir regras, e sem nenhuma habilidade motora para brincar.

Eu e meus amiguinhos olhávamos uns para os outros quando ele aparecia querendo brincar, trocávamos aquele ar cúmplice de tristeza, não querendo aquele pirralho na brincadeira. Só que, irmãos mais novos têm uma enorme habilidade de ir correndo para os pais reclamar por algo e conseguir que sua queixa seja atendida – SEJA ELA QUAL FOR!

Caillou brincando com sua irmã café-com-leite.

Meu irmão corria pra minha mãe aos berros. Minha mãe imediatamente deixava de conversar com outros adultos, e olhava para meu irmão, achando que ele tinha quebrado as duas pernas, ou cortado um dedo com a faca, ou ainda sido estraçalhado pelo cachorro. Quando mamãe via que estava tudo bem, ela perguntava pro chorão do meu irmão:

- O que aconteceu, menino?

E com voz infantil e engrolada pelo choro, meu irmãozinho astutamente respondia, sabendo ser certo que sua queixa seria ouvida:

- É que o Kily não deixa eu brincar de pega-pega com ele e os amigos dele.

Alguns segundos depois de eu proibir meu irmão de brincar com a gente, tão logo ele se queixava para minha mãe, eu ouvia um enorme grito de minha mãe, me chamando, brava. Eu ia até ela com o rabo entre as pernas:

- Me chamou, mamãe?

E minha mãe dizia, num tom bravo e autoritário:

- O seu irmão disse que você não quer deixar ele brincar de pega-pega com vocês! Que negócio é esse? Pode já deixar seu irmão brincar também!

- Mas mãe, ele não sabe brincar de pega-peg...

- Não interessa! Pode deixar ele brincar! – antes mesmo que eu terminasse minha defesa, minha mãe já tinha lido as provas, dado a sentença e o veredicto.

Voltávamos para o meio das outras crianças, eu, cabisbaixo, e meu irmão, todo sorridente, porque ia brincar com a gente. Ou, achava que ia brincar...

Felizmente, nós crianças fomos muito espertas e criamos uma norma de convivência interna, que ficou nacionalmente conhecida como Política do Café-com-Leite (isso não tem nada a ver com o período homônimo da história brasileira). Nos países de língua inglesa, o termo é conhecido como Coffee with Milk Political (exceto na Inglaterra, onde ninguém toma café, mas sim chá, por isso o termo é conhecido como Tea without Sugar Political).


Um cappuccinaço, coletivo contendo várias pessoas cafés-com-leite


A Política do Café-com-Leite consiste no seguinte: para atender às exigências inquestionáveis dos adultos, as crianças deixam a criança menor brincar com elas. Pelo menos nas aparências. O que os adultos, nem essa criança menor sabem, é que ela não está brincando de verdade. Ela só está ali no meio, tal qual um quero-quero num meio de um campo de futebol, que figura no cenário do jogo, mas que não participa dele efetivamente. Para que a Política do Café-com-Leite entre em vigor, basta que uma das crianças, de preferência o irmão, no caso eu, que estou rejeitando meu irmão menor, diga em alto e bom som para que todas as demais crianças escutem: “o Juninho é Café-com-Leite”. A expressão café-com-leite já subentende no mundo infantil que aquela criança só está brincando junto com as demais no universo dela. Mas no mundo real, ela está brincando sozinha.

Aí eu fico me lembrando de quantas vezes eu vi a carinha do meu irmão, todo feliz, brincando de pega-pega, porque ele nunca estava “pego”, ele nunca perdia, ele era a melhor do jogo, estava sempre ganhando. Coitado, nem sabia que o pessoal estava era ignorando ele. Era como se o pobrezinho nem estivesse ali. Corria para um lado e para o outro com um sorriso estampado no rosto, esbanjando alegria. Quando a criança que estava pega corria na direção dele mas passava reto (porque na verdade estava perseguindo outra criança), ela se achava, pensava que tinha sido mais rápido e tinha conseguido despistar a atenção da outra criança. Que bobão!

Uma variação da política do café-com-leite também é útil para se utilizar com os irmãos mais novos, quando se está jogando vídeo game e a mãe ou o pai entra no nosso quarto brigando porque o irmão mais novo foi chorando contar que não deixamos ele jogar. Aí, nesse caso, não é preciso invocar a política do café-com-leite em voz alta. Basta entregar o controle para o irmãozinho jogar, e dizer que ele é o personagem principal do jogo (ou que ele é o outro time, em caso de jogos de futebol). A grande sacada dessa adaptação, é que o controle é entregue para o irmão DESCONECTADO do vídeo game. Aí o inocente vai ficar achando que são as irregulares e desajeitadas ações dele no controle que provocam as ações do personagem na tela da televisão. Mais uma vez, o irmão mais novo vai achar que está abafando no jogo. E ainda por cima, depois vai dizer que pra todo mundo que zerou o game. E no caso, ele realmente zerou. Não fez nenhum ponto...

Irmão jogando vídeo game com o irmão caçula café-com-leite.


Ao escrever este texto, fiquei pensando nas pessoas que até hoje parecem que são cafés-com-leite. Eu vejo uns estudantes tão perdidos na sala-de-aula, que tenho minhas dúvidas do porque eles estão aqui. Às vezes eu imagino o professor dizendo num tom de voz um pouco mais baixo, no início da aula, antes daquele aluno que sempre chega atrasado chegar: “olha pessoal, o Fulano vai chegar daqui a pouco, e ele pensa que ele faz parte da aula, mas ele é café-com-leite, tá? Ele vai fazer todas as provas, mas não ta valendo nada, combinado? Se eles caírem no seu grupo no dia trabalho, coloquem o nome dele, que na hora de corrigir eu considero só o nome dos demais que realmente fizeram o trabalho, porque o Fulano é café-com-leite”.


Yamcha, o café-com-leite master do Dragon Ball.


Togepi, o café-com-leite do reino Pokémon.

As pessoas sem saberem, adotam a política do café-com-leite em seu cotidiano. Quando mendigos vêm pedir dinheiro, ou vendedores ambulantes ou nos ônibus vêm vender seus produtos, ou ainda malabaristas fazem sua arte no semáforo e os ignoramos acintosamente, estamos tecnicamente dizendo que essas pessoas são café-com-leite também. É algo cruel de se pensar, mas é a realidade.

Além disso, eu uso a política do café-com-leite até hoje, com minha namorada. Quando nós vamos discutir a nossa relação, eu finjo que estamos discutindo de verdade, mas na verdade ela é café-com-leite. Então, quando cada um de nós aponta o que quer que o outro mude ou melhore na relação, só ela quem vai mudar, porque eu não me lembro de nada do que ela falou. E quando estou jogando vídeo game também, e ela sempre aparece pedindo pra jogar junto comigo, pra nos divertirmos juntos tentando zerar o jogo? Aí é mais complicado. Nesse caso eu faço o seguinte: nós jogamos o game juntos, e ao final da partida, salvo o nosso ridículo progresso (quando há algum) no memory card do vídeo game. Só que, o que ela não sabe, é que eu tenho um memory card reserva escondido, e é neste outro que eu salvo o jogo que eu jogo para valer, tentando zerar.

Existem inúmeras outras aplicabilidades da política do café-com-leite para minha namorada. Não vou citar todas porque não quero me estender muito neste texto. Os exemplos já foram suficientes para mostrar como esse conhecimento que adquiri na infância ainda é muito útil na minha vida.

Um café-com-leite que superou seus limites e venceu na vida.


Sheldon identificando mais um loser, evolução de um café-com-leite.